Agroecologia em favelas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Criança na horta comunitária da Vila Laboriaux, na Rocinha (RJ)
Criança na horta comunitária da Vila Laboriaux, na Rocinha (RJ).

Agroecologia em favelas - Quando se escutam palavras como agroecologia, sustentabilidade e meio ambiente, a tendência comum é pensar na Floresta Amazônica ou em outras paisagens longe dos centros urbanos. A natureza é sempre imaginada como algo afastado das cidades e apartado do ser humano. Mas nas frestas da selva de pedra, entre as casas e vielas das favelas e periferias, o verde resiste e práticas sustentáveis e agroecológicas de relação com a terra e a natureza são resgatadas e cultivadas pelos seus moradores.

Autoria: Gabriel Nunes[1].

A agroecologia[editar | editar código-fonte]

A agroecologia é definida como um modelo de agricultura que apresenta uma visão holística sobre os agroecossistemas, incorporando questões sociais, políticas, ambientais, culturais, energéticas e éticas ao modo de produzir e se relacionar com a natureza. Pode ser considerada tanto uma prática, como uma disciplina científica e movimento social e político (WEZEL, 2009). Tem por objetivo a produção de alimentos saudáveis e orgânicos, baseando sua produção em manejos naturais que se adequam ao tipo de ecossistema onde estão inseridos.

Segundo Guterres (2014), o sistema agroecológico tem por objetivo "produzir de acordo com as leis e as dinâmicas que regem os ecossistemas – uma produção com (e não contra) a natureza”. Dessa forma, a agroecologia se opõe às práticas da chamada “Revolução Verde” da década de 1960 que se empenhou no aumento da produção de alimentos, baseada na monocultura e no uso de agrotóxicos e sementes geneticamente modificadas, desconsiderando os possíveis danos que esse tipo de produção acarreta ao meio ambiente, aos trabalhadores rurais e à população consumidora desses alimentos.

Questão de saúde[editar | editar código-fonte]

Os agrotóxicos são um dos principais pontos de crítica e combate do movimento agroecológico, tanto pelos danos causados ao solo, como também para a saúde de agricultores e consumidores. O Brasil é recordista na utilização de agrotóxicos, o quadro que se acentuou na gestão do ex-presidente Bolsonaro. Segundo a Coordenação-Geral de Agrotóxicos e Afins (CGAA), o governo federal liberou 2.182 novos agrotóxicos em 4 anos de gestão, sendo um recorde na série histórica que teve início em 2000.

Dados do estudo “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”, da pesquisadora Larissa Mies Bombardi, da Universidade de São Paulo revela como a legislação brasileira é mais permissiva em comparação com a legislação europeia, quanto ao limite aceito de resíduos de agrotóxicos na água e nos alimentos. Enquanto, por exemplo, o limite de herbicida glifosato que pode ser encontrado na água na União Europeia é definido em 0,1 miligramas por litro, o Brasil permite até 5 mil vezes mais. Quando se trata dos alimentos, a malationa, um inseticida utilizado na produção de feijão, tem limite no Brasil  400 vezes maior em relação a União Europeia.

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) alerta em estudo recente para os efeitos crônicos a longo prazo resultantes da contaminação de resíduos de agrotóxicos presentes nos alimentos, ocasionando diferentes doenças, como cânceres, malformação congênita, distúrbios endócrinos, neurológicos e mentais. A abrangência da população que é exposta aos riscos dessa contaminação não se limita apenas aos consumidores, mas engloba os trabalhadores das fábricas de agrotóxicos e da agricultura, além das populações residentes em áreas próximas às fábricas e áreas que possuem produção agrícola.

Racismo ambiental[editar | editar código-fonte]

A constatação sobre os efeitos catastróficos do atual modelo agrícola praticado pelo agronegócio suscitou, desde a segunda metade do século passado, debates sobre um modelo de desenvolvimento econômico que não ponha em risco a sociedade, a vida humana e o meio ambiente. Inúmeros esforços vêm sendo empreendidos para evitar as tragédias ambientais, cada vez mais comuns, e que atingem especialmente as populações mais vulneráveis.

Populações originárias, quilombolas, faveladas e periféricas são as que mais sofrem com a fome, a dificuldade no acesso a alimentos saudáveis, a ausência de saneamento básico, o extrativismo violento, a invasão de terras, o envenenamento do solo e das águas, entre outras mazelas. A raça é um fator comum que perpassa as populações mais atingidas pela ausência de políticas públicas nesses territórios

O conceito “racismo ambiental” foi cunhado pelo ativista norteamericano Benjamin Chavis e é utilizado por pesquisadores para denunciar as situações de injustiça ambiental que atingem comunidades de minorias étnicas, como as favelas e periferias.

Segundo Bullard (1993), racismo ambiental é definido pela:

“Discriminação racial na elaboração das políticas ambientais, aplicação e regulação de leis, o ataque deliberado às comunidades de cor por meio de instalações de resíduos tóxicos, a sanção oficial de venenos e poluentes cuja presença causa risco de vida para nossas comunidades e a história da exclusão de pessoas de cor da liderança dos movimentos ecologistas”.

Nesse contexto, coletivos, associações de moradores e movimentos sociais assumem um importante papel na defesa dos direitos civis e ambientais de populações marginalizadas, desenvolvendo projetos nas comunidades, trabalhando educação ambiental, produzindo hortas comunitárias e restaurando espaços verdes, como se verá a seguir.

Agroecologia em favelas[editar | editar código-fonte]

Em uma roda de conversa em um dos encontros para elaboração do Plano de Ação Popular do CPX, no Complexo do Alemão (RJ), alguns moradores compartilhavam suas lembranças de como existiam mais árvores e espaços verdes nas favelas antigamente. Era comum a existência das pequenas “roças”, como a que deu origem ao nome da favela da Rocinha e no quintal das casas eram cultivadas verduras, ervas medicinais e havia a criação de animais que forneciam alimentos e remédio para as famílias.

Hoje, as áreas verdes nas favelas são raras, como o Parque Ecológico da Maré,  única área verde no Complexo da Maré (RJ) e a Serra da Misericórdia, patrimônio ambiental na Zona Norte do Rio de Janeiro. Diante desse contexto, há diversos projetos agroecológicos em favelas e periferias que atuam na preservação dos espaços verdes e têm iniciativas que envolvem saúde, educação, cultura, infraestrutura e meio ambiente.

Projeto agroflorestal no Morro da Providência (RJ), foto de Bárbara Dias.
Projeto agroflorestal no Morro da Providência (RJ), foto de Bárbara Dias.

Os mutirões são um exemplo de prática comum a esses projetos, onde moradores se encontram para fazer a limpeza de espaços públicos, cuidar das hortas, realizar o plantio de mudas nativas e outras atividades, fortalecendo assim a participação comunitária e o sentido de pertencimento àquele território.

Já as hortas comunitárias são uma importante ferramenta de garantia da segurança alimentar, com a produção de alimentos saudáveis e sem venenos para o consumo dessas populações. E o excedente geralmente é doado para famílias vulneráveis ou vendido em feiras do território ou do entorno, impulsionando a geração de renda dos envolvidos.

Além disso, muitos projetos agroecológicos nas favelas promovem rodas de conversas e oficinas sobre práticas como o plantio de mudas, a produção de hortas, o desenvolvimento de tecnologias agroecológicas, constituindo-se em espaços de partilha de saberes populares entre os moradores. Muito mais do que novas práticas e técnicas, a agroecologia é justamente o resgate dos saberes dos mais velhos, dos antepassados que produziam seus alimentos nas hortas e roçados de forma agroecológica.

Veja abaixo alguns exemplos de projetos de agroecologia em favelas do Rio de Janeiro e do Brasil, tendência que tende a se ampliar cada vez mais, em esforços que envolvem os moradores, Organizações Não governamentais e governos locais, apesar da falta de estímulos e de uma política nacional.

Verdejar Socioambiental (RJ)[editar | editar código-fonte]

Por Eduardo Sá, Articulação Nacional de Agroecologia.
Por Eduardo Sá, Articulação Nacional de Agroecologia.

A Verdejar nasceu em 1997 por iniciativa de moradores locais, quando numa noite chuvosa resolveram subir a comunidade Sérgio Silva - que compõe o Complexo do Alemão - e plantar mudas da Mata Atlântica em uma área verde da Serra da Misericórdia. Com mais de 25 anos de atuação, a ONG Verdejar Socioambiental se tornou referência em agroecologia em favela, atuando na preservação do Maciço da Serra da Misericórdia - Patrimônio Ambiental, último fragmento de Mata Atlântica da Zona Norte do Rio de Janeiro.

As ações da ONG são distribuídas de acordo com os eixos de trabalho: Agroecologia Urbana; Educação Ambiental; Justiça Ambiental e Permacultura; e Cultura e Meio Ambiente. Entre as atividades são realizados mutirões e hortas comunitárias, desenvolvimento de tecnologias alternativas de baixo custo, como biodigestor, aquecedor solar e captação de água da chuva, além de serem promovidos eventos culturais e educativos para fomentar a cultura agroecológica.

A horta comunitária do Verdejar é ponto de encontro dos moradores para partilha de saberes agroecológicos através de cursos, mutirões e outras atividades e foi certificada como a primeira horta comunitária e agrofloresta de favela no Rio de Janeiro pelos Sistemas Participativos de Garantia (SPG) dos Orgânicos. Além de gerar alimentos saudáveis e sem agrotóxicos, ela produz mudas e insumos para outras hortas do território.

O Verdejar possui o Ponto de Cultura Luiz Poeta Verdejar, onde trabalha a valorização do legado poético-ecológico de Luiz Poeta, como parte do processo de resgate e valorização da Memória Ambiental e Cultural da Serra da Misericórdia. Através do teatro, da fotografia e do cinema, desenvolvem processos de co-criação de conteúdos e narrativas sobre agroecologia e permacultura.

Roots Ativa (MG)[editar | editar código-fonte]

Equipe do Roots Ativa.
Equipe do Roots Ativa.

O Aglomerado da Serra é a maior favela de Minas Gerais e onde funciona o Coletivo Roots Ativa na Vila de Nossa Senhora de Fátima, uma das localidades da Serra. Criado há mais de 10 anos (em 2006) o coletivo é baseado na cultura rastafari que defende o respeito ao meio ambiente e o consumo de alimentos que não envolvam agrotóxicos e sementes geneticamente modificadas.

O grupo é formado por educadores, cozinheiros, agentes culturais e artistas (a maioria moradores jovens da região) e entre suas atividades estão a recuperação de áreas degradadas do território e o desenvolvimento de sistemas agroflorestais, conciliando produção de alimentos saudáveis com preservação de espécies nativas.

Projetos:

  • A Cozinha Criativa produz e vende alimentos integrais e vegetarianos em feiras da região.
  • O Vida Composta é um projeto de formação e geração de renda para os jovens locais a partir de princípios agroecológicos de coleta e beneficiamento do resíduo orgânico em adubos e insumos agrícolas naturais de alta qualidade, mudas, etc.
  • O Preta Linda Sou trabalha com a valorização da mulher negra e periférica.

Hortas Cariocas (RJ)[editar | editar código-fonte]

Horta de Manguinhos. Fonte - Hortas Cariocas.
Horta de Manguinhos. Fonte - Hortas Cariocas.

O programa Hortas Cariocas é uma iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro desde 2006, através da Gerência de Agroecologia e Produção Orgânica (GAP) que implanta hortas comunitárias orgânicas em terrenos ociosos de comunidades e escolas da rede municipal de ensino. O programa tem como objetivo a ampliação do acesso da população mais vulnerável socialmente à alimentos orgânicos e saudáveis, além de gerar renda para quem trabalha nas hortas.

Todos os trabalhadores das hortas comunitárias são moradores locais, capacitados e remunerados pela prefeitura para gerir as hortas, garantindo assim uma fonte de renda para as famílias. O destino dos alimentos é dividido entre a doação de metade da produção para escolas, creches, asilos e para famílias em situação de vulnerabilidade. A outra metade é vendida no próprio território a preços populares.

O Hortas Cariocas conta com mais de 50 unidades e só no primeiro semestre de 2022, o programa produziu cerca de 35 toneladas de alimentos e no mês de junho do mesmo ano foram produzidas 107 mil mudas. A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu o programa como essencial para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da entidade e considerou que o projeto “incentiva a agroecologia urbana e dá acesso a alimentos saudáveis nas regiões mais vulneráveis da cidade”.

Um dos símbolos do programa é a horta de Manguinhos, na Zona Norte do Rio, que é considerada a maior horta comunitária da América Latina, possui 21 trabalhadores e ocupa cerca de quatro campos de futebol.

Saiba mais no vídeo abaixo:

Hortas Comunitárias (MG)[editar | editar código-fonte]

Foto da Prefeitura de Sete Lagoas.
Foto da Prefeitura de Sete Lagoas.

Em Sete Lagoas, Minas Gerais, o projeto de Hortas Comunitárias da prefeitura local possui mais de 40 anos e é referência nacional, sendo uma das maiores hortas da América Latina. São no total sete hortas divididas em diferentes regiões da cidade, com 24 quilômetros de extensão.

Os agricultores das hortas são selecionados através do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), recebendo a terra, água e energia elétrica e em contrapartida fornecem parte dos alimentos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE (escolas do município e do estado).

O projeto beneficia com renda e ocupação 320 famílias e os produtos colhidos são vendidos pelos próprios agricultores nas hortas ou em mercados e feiras da cidade.

Saiba mais no vídeo abaixo:

Outras iniciativas[editar | editar código-fonte]

Referências[editar | editar código-fonte]

ABRASCO. Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Parte 1 - Agrotóxicos, Segurança Alimentar e Nutricional e Saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO, 2012. Disponível em: <https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2015/03/Dossie_Abrasco_01.pdf>. Acesso em: 19 mai. 2023.

BASTOS, Rafael. Hortas Cariocas. Tem no Subúrbio, 19 de fev. 2021. Disponível em: <https://www.temnosuburbio.com.br/post/programa-de-hortas-urbanas-da-prefeitura-do-rio-atua-em-escolas-e-comunidades-no-subúrbio>. Acesso em: 19 mai. 2023.

CHAVIS, Benjamin F. “Foreword”. In: BURLLARD, R.D. Confronting enviromental

racism: Voices from the grassroots. Boston, MA: South End Press, 1993.

GUTERRES, I. Agroecologia militante: contribuições de Enio Guterres. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

PROGRAMA Hortas Cariocas. Políticas Públicas de Agricultura Urbana. Disponível em: <https://100politicas.escolhas.org/estudo/programa-hortas-cariocas/>. Acesso em: 19 mai. 2023.

QUEM somos. Verdejar. Disponível em: <https://www.verdejar.org/quem-somos>. Acesso em: 19 mai. 2023.

SALATI, Paula. Bolsonaro liberou 2.182 agrotóxicos em 4 anos, recorde para um governo desde 2003. G1, 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2023/02/04/bolsonaro-liberou-2182-agrotoxicos-em-4-anos-recorde-para-um-governo-desde-2003.ghtml>. Acesso em: 19 mai. 2023.

TAVEIRA, Vitor. Por que os rastafari praticam agroecologia? Brasil de Fato, 15 de nov. de 2018. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2018/11/15/por-que-os-rastafari-praticam-agroecologia>. Acesso em: 19 mai. 2023.

UMA agricultora ecológica na favela. Datalabe. Disponível em: <https://datalabe.org/uma-agricultora-ecologica-na-favela/>. Acesso em: 19 mai. 2023.

WEZEL, A., Bellon, S., Doré, T., Francis, C., Vallod, D., David, C. Agroecology as a science, a movement or a practice. A review. Agronomy for Sustainable Development, 2009.

Notas[editar | editar código-fonte]

  1. Gabriel Nunes, graduado em Serviço Social e mestrando em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social - EICOS/UFRJ. Pesquisador do Dicionário de Favelas Marielle Franco (Icict/Fiocruz). E-mail: gabrielnunesnobre10@gmail.com

Ver também[editar | editar código-fonte]