Guerra, “pacificação” e militarização

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


Estudo relacionado ao curso Clássicos e contemporâneos sobre favelas, realizado no âmbito do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O curso teve objetivo de debater o lugar das favelas no Rio de Janeiro, estabelecendo diálogos entre estudos clássicos e contemporâneos. Este verbete apresenta e analisa quatros textos que compõem a bibliografia obrigatória do curso.

Autoria: Alex, Alyssa Ribeiro Perpeto Trotte, Beatriz  Araújo, Cintia Frazão e Lucas Carvalho.
Pacificação Favelas Rio de Janeiro.

Introdução[editar | editar código-fonte]

O presente verbete faz parte do trabalho final da disciplina "Clássicos e Contemporâneos sobre Favelas", lecionado pela Prof.ª Doutora Palloma Menezes, no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), no primeiro semestre de 2024. Este verbete corresponde a aula de número 10 e foi escrito a dez mãos por alunos e alunas da pós-graduação inscritos na disciplina, sendo eles: Alyssa Ribeiro Perpeto Trotte, Alex, Beatriz Araújo, Cintia Frazão e Lucas Carvalho.

Neste verbete, objetivamos analisar e apresentar quatros textos que compõem a bibliografia obrigatória da disciplina ao leitor. Por fim, sintetizamos o debate realizado presencialmente em sala, no campus IESP-UERJ, tecidos coletivamente entre a Prof.ª Palloma Menezes, colegas da disciplina e os debatedores.

Textos debatidos[editar | editar código-fonte]

Entre o individualismo e a solidariedade: dilemas da política e da cidadania no Rio de Janeiro.[editar | editar código-fonte]

Na primeira seção do artigo intitulada “de ‘cidade maravilhosa’ a  ‘cidade partida’: duas representações do Rio de Janeiro” a autora descreve a passagem do Rio como uma cidade maravilhosa, título atribuído por uma escritora francesa, no livro La ville marveilleuse, para representação de “cidade partida”, advinda de uma série de analistas que interpretaram o crescimento da violência na chave da “questão social”.

Na segunda seção, intitulada de “O Rio de Janeiro como uma cidade violenta”, a autora descreve uma guerra na cidade, que punha em um lado, a imagem do morro, e do outro, a imagem do asfalto. Segundo a autora os partidários desta perspectiva aceitava de bom grado a violência policial em territórios dos e contra grupos estigmatizados, assistindo passivamente o envolvimento de policiais militares em diversas chacinas. Mais a frente a autora descreve uma outra imagem da violência, frequentemente evocada pela mídia, que são os adolescentes que desempenham diversas funções para o tráfico de drogas.

Na terceira seção intitulada “Qual cidadania, se estamos em guerra?”, a autora discute como demandas que podem remeter a insegurança e ao particularismo colocam em risco as bases da dimensão cívica da cidadania. Ela ainda vai dizer que elementos centrais para a estruturação desse estado de guerra são a percepção de alteridade como ameaça e desta como imune a qualquer tipo de solução política ou institucional.

Seguindo, na quarta seção intitulada como “Particularismo e Intolerância”, a autora discute como esse campo discursivo recobre a tematização dos direitos humanos dos presos/criminosos. No caso do Rio de Janeiro mais especificamente, o principal operador de demanda por mais cidadania constitui duas imagens polares a partir da metáfora da guerra: se por um lado ela exige garantias às liberdades individuais para as classes médias e altas, por outro ela tolera a supressão de sua condição de prerrogativas fundamentais para indivíduos de setores populares e/ou favelados.

Na quinta seção intitulada “A proposta de pacificação da cidade do Rio de Janeiro” a autora trata de projetos que surgem na segunda metade da década de 90 e propõe a pacificação da cidade por meio de soluções democráticas para o problema da violência e da segurança pública.

Por fim, em “As redes de solidariedade como promotoras da cidadania” a autora fala sobre como a noção da cidadania se distancia da valorização do espaço público como lugar do encontro da negociação e da conciliação de interesses divergentes que caracteriza uma cultura política democrática.

Monitorar, negociar e confrontar: as (re)definições na gestão dos ilegalismos em favelas “pacificadas”.[editar | editar código-fonte]

Introdução[editar | editar código-fonte]

A introdução do artigo contextualiza o momento em que Sergio Cabral Filho assumiu como governador do Rio de Janeiro em 2007, enfrentando altos índices de violência urbana, especialmente homicídios, durante os preparativos para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Em resposta a esse cenário, foi iniciado o projeto de policiamento comunitário que deu origem às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), inicialmente implantadas no Santa Marta e na Cidade de Deus. A pesquisa etnográfica realizada nessas favelas é usada para analisar as mudanças nas interações entre policiais e jovens envolvidos no comércio ilegal de drogas, destacando como a proximidade física (instalação) influenciou as práticas e percepções no contexto do "legal-ilegal". O estudo visa entender as redefinições na gestão dos ilegalismos nas favelas após a implementação das UPPs, examinando as dinâmicas de poder e as consequências para os diferentes atores envolvidos ao longo do tempo.

Só mais uma operação policial “normal”?[editar | editar código-fonte]

A seção discute a chegada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) na Cidade de Deus e no Santa Marta, em novembro de 2008, sob a perspectiva inicial dos moradores e dos jovens envolvidos no comércio de drogas. A permanência no território surpreendeu os residentes, que esperavam uma incursão policial "normal", com trocas de tiros e a posterior saída das autoridades. No entanto, desta vez, a polícia permaneceu, desafiando as expectativas e gerando um cenário de incerteza para os moradores das favelas. A falta de informações claras sobre a duração e os objetivos das UPPs levou os moradores e traficantes a iniciar um processo de investigação e adaptação à nova realidade. Traficantes e moradores buscaram entender e se adaptar à presença policial contínua, alterando suas estratégias e relações no contexto do "legal-ilegal" das favelas cariocas.

O comércio varejista de drogas “pacificado”[editar | editar código-fonte]

A chegada da polícia à favela causou um enfraquecimento temporário do tráfico de drogas nas áreas ocupadas. Os envolvidos no comércio de drogas ilícitas na Cidade de Deus e no Santa Marta perceberam inicialmente que retomar o controle territorial completo não era viável devido à presença contínua e ao poder armado superior dos policiais. Assim, passaram a testar novas estratégias de ação para a sobrevivência do comércio de drogas, algumas dessas mudanças foram: a venda passou a ser móvel e menos sedentária, passaram a ocultar pequenas "cargas" em locais próximos, maior uso de menores de idade para as vendas e aumento de pessoas que atuavam como "olheiros" para monitorar a presença policial. A vigilância do tráfico também se ajustou, os traficantes desenvolveram novos métodos de mapeamento para controlar a presença policial variável e intensiva nos territórios pacificados.

O “bom traficante”[editar | editar código-fonte]

Em resumo, após a implantação das UPPs, iniciou-se um processo de adaptação crucial para os jovens envolvidos no tráfico de drogas das favelas. Esse período foi caracterizado pela necessidade de desenvolver uma nova sensibilidade perceptiva e estratégica para navegar na nova ecologia pós-"pacificação". Tanto traficantes quanto policiais passaram a utilizar intensamente dispositivos de monitoramento para mapear os territórios, de modo a substituir a antiga lógica de domínio territorial pela vigilância constante e pela capacidade de adaptação rápida. A dinâmica de confronto direto deu lugar a outras estratégias como as de dissimulação e armadilhas, onde a capacidade de antecipação e o jogo psicológico se tornaram cruciais. Esse contexto resultou em uma intensificação da tensão psicológica para os envolvidos, que agora precisavam manter-se mentalmente alertas em um ambiente onde a polícia estava infiltrada e conhecia o território. O fuzil dá lugar a outros aparelhos de mapeamento, como rádios, celulares e localização estratégica. Diante desses novos imperativos, a figura do “bom traficante” não se reduziria mais àquela que estivesse para o confronto ou para matar, mas passou a ser requerido a habilidade de permanecer ativo e vigilante, constantemente atento ao que ocorre no entorno. Assim, o “monitorar” se torna umas das peças fundamentais para a gestão do tráfico e de suas redefinições.

A rotinização da upp, o (re) fortalecimento do tráfico e a (re) formatação dos “arregos”[editar | editar código-fonte]

A seção discute os primeiros anos das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. Inauguradas sem uma clara compreensão de seus resultados potenciais, as UPPs conseguiram angariar algum apoio devido à redução da violência letal e ao suporte financeiro de empresários e dos governos municipal, estadual e federal. Adicionalmente, a mídia enfatizou os sucessos do projeto, contribuindo para sua aclamação tanto entre os moradores das favelas quanto na opinião pública em geral, sendo visto como um "milagre".

No entanto, mesmo nesses estágios iniciais de "pacificação", surgiram sinais de um retorno gradual da ação dos traficantes, isto é, um possível (re)fortalecimento do tráfico de drogas diante de suas novas estratégias de gestão. Rumores e relatos de moradores indicavam que traficantes estavam se rearmando e retomando o controle em certas localidades, o que gerou, à posteriori, questionamentos sobre a eficácia do modelo das UPPs. Conforme o declínio [das UPPs] avançava, surgiram opiniões divergentes quanto ao seu desenrolar. Para os moradores ocorreu um processo de flexibilização do policiamento que, segundo eles, estava ligado “a diversas modalidades de negociações financeiras entre policiais e traficantes” (p.204). Essas negociações se caracterizariam por propinas e novas formatações dos “arregos”, a partir do que seria acordado ocorreria um processo de flexibilização da ação da polícia no local. Em síntese, houveram redefinições nas negociações de “mercadorias políticas” (Misse, 2007) nesse contexto das favelas pacificadas.

A “crise” das UPPs[editar | editar código-fonte]

De modo paradoxal, o ápice do projeto, representado pela ocupação das favelas maiores, marcou também o início da sua fase decadente. Problemas anteriormente considerados "resolvidos" ressurgiram nas favelas pacificadas, como trocas de tiros, aumento das mortes e a retomada do tráfico sedentário, o tráfico, a partir do afrouxamento policial passa gradualmente a confrontar a ação da polícia no território. A percepção de que o projeto estava perdendo eficácia intensificou-se a partir de 2012, com a implementação das UPPs na Rocinha, Complexo do Alemão e Penha. As unidades mais antigas começaram a distribuir policiais para reforçar as novas unidades, o que resultou em dificuldades na patrulha integral das áreas. Consequentemente, os traficantes cessaram de se ocultar e reassumiram seu domínio nas favelas. Dessa forma, com o aumento das trocas de tiros e mortes, os espaços anteriormente “pacificados” necessitaram de reforços policiais, o que suscitou, em certa medida, o retorno das operações.

Considerações Finais[editar | editar código-fonte]

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) foram implementadas no Rio de Janeiro com o propósito de reduzir os índices de homicídios e violência, em vistas de assegurar a realização de grandes eventos e atrair investimentos internacionais, especialmente para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. A implementação das UPPs exigiu uma adaptação criativa tanto por parte dos moradores quanto do tráfico de drogas, uma vez que, diferentemente das operações policiais tradicionais, caracterizadas por incursões temporárias, a presença da polícia se tornou permanente, o que alterou a dinâmica local. Em resposta, o tráfico adotou novas estratégias de gestão para continuar suas atividades, tornando-as mais discretas e móveis, a fim de evitar a detecção pela polícia. O antigo confronto direto se transformou em um jogo complexo de gato-rato, no qual tanto traficantes quanto policiais usavam diferentes tecnologias e táticas em seus exercícios.

A sessão final do artigo discute as dinâmicas atuais na gestão dos ilegalismos em favelas cariocas após a inauguração das UPPs. Destaca-se a intensificação das práticas de monitoramento e vigilância por parte tanto da polícia quanto do tráfico, refletindo um cenário de tensão e suspeição constante nos territórios "pacificados". Essas dinâmicas são analisadas à luz de três modalidades principais: negociações envolvendo propinas e redes de proteção, demonstrações de poder através de confrontos armados e o uso crescente de dispositivos de vigilância para controlar os fluxos territoriais. O artigo argumenta que essas práticas são fundamentais para compreender como os ilegalismos são geridos e redefinidos, configurando campos de força complexos e variados nos diferentes momentos e territórios "pacificados".

O conceito de “ilegalismos” aparece no texto para além de falhas ou lacunas na aplicação das leis, mas sim como práticas dotadas de uma lógica interna singular que opera de forma distinta e autônoma dentro de contextos sociais e políticos. A experiência das UPPs mostra que lidar com a segurança pública nas favelas requer políticas sensíveis ao contexto local, que entendam as dinâmicas sociais e econômicas desses lugares tendo em vista seus próprios mecanismos de funcionamento.

For a war yet to end: Shootouts and the production of tranquillity in massive Rio de Janeiro[editar | editar código-fonte]

Lançado em 2008, o artigo "Tiroteios, legibilidade e espaço urbano: Notas etnográficas de uma favela carioca", escrito pela Prof.ª Mariana Cavalcanti (IESP-UERJ), ainda compõe a atualidade e a realidade das favelas cariocas. Tomando o tiroteio como objeto de investigação e uma lente para vislumbrar rotinas, Cavalcanti explora como este fenômeno pode tecer etnografias do medo e da violência, imbuídos na violência urbana, na vida dos moradores e moradoras de favela. Da perspectiva do ordinário, a hipótese do artigo levanta como a (re)produção e a construção social do espaço da favela são atravessados por uma série de dinâmicas e rotinas impostas, majoritariamente, pela ação do tráfico, reproduzidas também pela ação de atores públicos, privados ou do terceiro setor.

Com a expansão das temáticas de segurança pública e violência urbana, sobretudo nas Ciências Sociais, o campo de estudos têm justaposto o medo, a criminalidade e a insegurança em análises sociológicas, fruindo de sua capacidade de ser produtora de novas formas sociais capazes de oferecer outros objetivos de investigação. Reconstruindo seus argumentos a partir da "virada espacial", que podem ser dividas em três momentos, cita três influências centrais, sendo eles: i) Michel Foucault, 1967 – espaço como categoria interpretativa; ii) Pierre Bourdieu, década de 1970 – espaço como constituinte de estruturas subjetivas micro e macro; iii) Henri Lefebvre na década de 1990 – noções de espaço ideal (imaginação) e o espaço real (das práticas cotidianas).

A partir do estudo dos espaços da cidade, Cavalcanti identifica o tiroteio como evento que torna visível o conflito que habita e constitui o espaço da favela. A eclosão de tiroteios no espaço da favela não constitui apenas um fenômeno estruturante da vida, que pode e é influenciado pela duração de tiroteios, mas uma das principais condições estruturantes de uma possível espacialidade própria que coexiste e é experimentada de formas diferentes.

Neste artigo, a autora apresenta sua interlocutora Samanta, moradora de uma favela da Zona Norte carioca, a qual a autora refere-se como Bela Vista. E é precisamente nesta sessão que formula o conceito de "ler o clima", ou "leitura do clima", que nada mais é do que a temporalidade de antecipação, "onde a familiaridade tanto com o cenário físico ou material quanto com as rotinas sociais que o constituem permite que moradores tentem se antecipar a sua eclosão" (Cavalcanti, 2008 p. 43). Ainda que tradicionalmente utilizemos o "clima" para nos referimos ao tempo meteorológico, neste caso o "clima" refere-se a uma atividade constante de leitura hermenêutica, "baseada em códigos tácitos, porém compartilhados e altamente sensórios, que combinam elementos significantes visuais e sonoros, jogos de presenças e ausências, performances quase ritualizadas, os ritmos da vida cotidiana e, é claro, o fluxo constante de rumores, fofocas e informações em geral" (Cavalcanti, 2008, p. 45).

O artigo logrou frutos, foi revisado e publicado com atualizações em uma nova versão, lançada em 2023, no The Geographical Journal. Intitulado "For a war yet to end: Shootouts and the production of tranquillity in massive Rio de Janeiro", o artigo apropria-se dos tiroteios como mais do que uma manifestação de violência ou de perigo. Apesar de sua natureza disruptiva, a depender de cada caso, os tiroteios são eventos que produzem significado, ordem e oportunidades, ao invés de ser, per se, episódios de caos e ordem.

Ao introduzir sua escrita, Cavalcanti retrata sobre as adversidades linguísticas de encontrar uma tradução equivalente à palavra "tiroteio" na língua inglesa. O termo "shoutoout", ainda que utilizado, não consegue contemplar em sua plenitude as subjetividades particulares deste fenômeno pela ótica utilizada, já que nos Estados Unidos da América este vocábulo está mais voltado para casos de "drive-by shootings" e para referir-se a massacres em escolas. Assim, a linguagem inglesa não consegue lidar com o termo "tiroteios" e suas variáveis, como "tirinhos", que referem-se a trocas de tiros com duração curta de tempo ou com poucos disparos. Assim, no que tange a produção de significados, a autora elenca que um deles é a fronteira que divide certa parte "segura" da cidade para outra parte "perigosa", isto é, os tiroteios e suas recorrências em espaços de favela reforça que há a ordem de “tranquilidade” ou de mínima "segurança" em outras partes da cidade. Destarte, a autora defende o argumento de que a presença (ou o espectro) de tiroteios passou a ser uma força modeladora no desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro sendo, portanto, fundamentais para compreender a urbanização massiva da cidade.

A acumulação de tiroteios no espaço urbano ao longo do tempo produziu efeitos desiguais  de sua presença espectral em todas as áreas de baixos rendimentos da cidade. Destarte, propõe a leitura da repetição de tiroteio, ou acúmulo de tiroteios, como forma de "presença-ausência" das práticas cotidianas de construção e habitação da cidade. Interpretando os tiroteios como produtores de atmosferas específicas de “guerra”, a autora parte de sua pesquisa etnográfica, realizada pela mesma desde 1990 no Rio de Janeiro e Região Metropolitana, e do acúmulo de relatórios e dados dos últimos 40 anos sobre a temática, para refletir sobre os tiroteios do Rio como fenômenos-chave que impulsionam o desenvolvimento urbano, suas temporalidades, incorporação na rotina e a espacialidade da atmosfera de "guerra" na cidade.

É importante ressaltar dois pontos, o primeiro deles é: a "leitura do clima", conceito desenvolvido em 2008, aparece de forma mais robusta e com correspondências de correlações temporais, como o "ler o clima" por mídias sociais, vide a utilização de grupos de whatsapp, para além das fontes de fofocas e/ou rumores. Em segundo lugar, Cavalcanti propõe uma (re)interpretação histórica dos tiroteios como ferramenta de perpetuação de uma espacialidade e atmosfera de "guerra" que estende-se desde a época das remoções, e possivelmente até mesmo antes deste período.

Da militarização à milicialização das cidades: efeitos de uma política nacional.[editar | editar código-fonte]

A militarização e a milicialização são fenômenos distintos, mas que muitas vezes estão interligados, especialmente em contextos urbanos. Vamos explicar cada um deles e destacar suas diferenças:

A militarização refere-se ao processo pelo qual instituições, práticas e discursos militares são incorporados em setores não militares da sociedade, como a segurança pública, a política e a cultura. Na militarização, há uma ênfase na hierarquia, disciplina, uso da força e armamento típicos das instituições militares. Esse fenômeno pode ser observado, por exemplo, na presença de militares em operações de segurança pública, na influência das Forças Armadas em decisões políticas e na adoção de estratégias de combate inspiradas em práticas militares.

Onde encontrar no diretamente no texto:

A militarização é descrita como um traço estrutural da organização das polícias Militar e Civil, que operam com mecanismos seletivos, reproduzindo e promovendo desigualdades sociais e raciais. Há menção ao aumento do número de representantes eleitos para o Legislativo oriundos das Forças Armadas e instituições policiais, o que demonstra a presença militarizada na agenda política (p. 4)

A presença massiva de membros do Exército Brasileiro em espaços decisórios é destacada como parte do cenário atual da política brasileira, contribuindo para a militarização das instituições (p.5).

A milicialização envolve o controle de territórios por grupos armados, muitas vezes compostos por ex-militares, policiais ou civis armados, que atuam de forma ilegal ou paralela ao Estado. Os milicianos exercem poder sobre a população local, impondo suas regras e explorando economicamente o território por meio de atividades ilegais, como extorsão, tráfico de drogas e venda de serviços. Diferentemente da militarização, a milicialização está mais associada a práticas criminosas e à usurpação do poder em benefício próprio.

Onde encontrar no diretamente no texto:

As milícias são descritas como grupos armados que controlam territórios e exercem poder sobre a vida de uma parte significativa da população, atuando de forma ilegal (p. 2; 5). A milicialização é considerada uma expressão significativa da militarização no contexto periférico brasileiro, envolvendo a intermediação de diversos serviços e negócios ilegais. (p. 2).

A atuação das milícias é apontada como uma ameaça à democracia em todas as suas dimensões, pois esses grupos são parte do próprio Estado, operando de forma clandestina e exploratória (p. 5).

Em resumo, enquanto a militarização se refere à influência e presença de elementos militares em diferentes esferas da sociedade, a milicialização está relacionada ao controle armado de territórios por grupos que atuam nas linhas do legal e ilegal. Ambos os fenômenos têm impactos significativos na segurança, nos direitos humanos e na democracia das cidades onde ocorrem.

O termo "ilegalismos" refere-se aos fenômenos que atravessam as cidades brasileiras, envolvendo fronteiras muitas vezes indiscerníveis entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito, o formal e o informal. Nesse contexto, os "ilegalismos" representam as práticas e estruturas que operam dentro de uma ambiguidade jurídica e institucional, desafiando as fronteiras tradicionais entre o que é legalmente aceito e o que é considerado ilegal ou criminoso.

O conceito de ilegalismos do Monitorar, negociar e confrontar: as (re)definições na gestão dos ilegalismos em favelas “pacificadas”. Da autora Dra. Palloma Menezes é mais completo, na opinião desta autora, para a compreensão do termo ilegalismos.

Para Menezes o termo "ilegalismos" refere-se a uma concepção que vai além da simples dicotomia entre legal e ilegal. Segundo a perspectiva apresentada, os ilegalismos não são apenas considerados como imperfeições ou lacunas na aplicação das leis, mas sim como práticas que contêm uma lógica interna própria e que operam de maneira diferenciada dentro de um contexto social e político específico. Essa abordagem amplia a compreensão dos fenômenos relacionados à ilegalidade, destacando a importância de analisar como as leis operam não apenas para coibir ou suprimir os ilegalismos, mas também para diferenciá-los internamente e compreender suas dinâmicas e modos de funcionamento dentro de determinados contextos.

Portanto, para a autora, o conceito de ilegalismos vai além da mera transgressão da lei e engloba uma série de práticas, relações e dinâmicas que envolvem a gestão dos ilegalismos em favelas "pacificadas" no Rio de Janeiro, sendo fundamental para a análise das transformações e desafios enfrentados nesses contextos urbanos .

O artigo, Da Militarização à Milicialização das cidades, aborda de forma crítica os efeitos da militarização e milicialização nas cidades brasileiras, destacando a influência desses fenômenos na segurança pública, nos direitos humanos e na democracia. A partir da análise apresentada, é possível observar alguns pontos-chave:

Impacto na Segurança e nos Direitos Humanos: A presença militarizada nas instituições policiais e a atuação de milícias em territórios urbanos são apontadas como fatores que contribuem para a violação de direitos fundamentais, como o direito à vida e à segurança dos cidadãos (p.5, 3). A militarização e milicialização são associadas ao aumento da violência policial, com consequências desproporcionais para a população negra e jovem, evidenciando um padrão racista e discriminatório nas ações de segurança.(p. 3).

Impacto na Democracia: A presença de membros das Forças Armadas em espaços decisórios e o aumento do número de representantes eleitos oriundos de instituições militares e policiais são apontados como elementos que fortalecem a militarização na agenda política, podendo comprometer a democracia e a transparência nas decisões públicas.(p. 4). As milícias, por sua vez, são descritas como uma ameaça à democracia, atuando de forma clandestina e exploratória, usurpando o poder estatal em benefício próprio e comprometendo a segurança e a ordem pública.(p. 5).

Necessidade de Ações e Mudanças: O artigo ressalta a importância do fortalecimento das ações da sociedade civil e de agentes públicos para denunciar e enfrentar as práticas que contribuem para a militarização e milicialização crescentes no país. Propostas como a elaboração de planos de redução da letalidade policial, a desmilitarização das polícias e o estabelecimento de mecanismos de controle social das políticas de segurança pública são apresentadas como medidas essenciais para combater os efeitos negativos desses fenômenos nas cidades. (p. 6).

O artigo oferece uma análise crítica e preocupante sobre a militarização e milicialização nas cidades brasileiras, apontando para a urgência de ações e mudanças estruturais para garantir a segurança, os direitos e a democracia em um contexto marcado pela violência e pela usurpação do poder estatal. Podemos pensar questões de raça, política e manifestações na sociedade a partir desse texto, partindo das seguintes questões:

Como a militarização e milicialização das cidades no Brasil têm impactado a população jovem negra? A militarização e milicialização das cidades no Brasil têm impactado de forma desproporcional a população jovem negra.

Violência Policial: A presença militarizada nas instituições policiais e a atuação de milícias em territórios urbanos têm contribuído para um aumento da violência policial, resultando em abusos de poder, execuções sumárias e violações dos direitos humanos, especialmente contra a população jovem negra.  A militarização e milicialização têm sido associadas a um padrão de violência policial que atinge de forma mais intensa e recorrente os jovens negros, perpetuando um ciclo de discriminação e violência baseada em questões raciais. Criminalização da Pobreza: A política de segurança pública adotada, influenciada pela militarização e milicialização, tem aprofundado a criminalização da pobreza, estigmatizando e marginalizando ainda mais a população jovem negra, que é  frequentemente associada de forma injusta e preconceituosa à criminalidade.

Genocídio da População Jovem Negra: Os discursos e práticas que fortalecem a militarização e milicialização das cidades têm contribuído para um cenário de genocídio da população jovem negra no Brasil, com altos índices de mortes violentas e uma violência estrutural que afeta de maneira desproporcional essa parcela da sociedade.

Qual é a contribuição dos discursos presidenciais para fortalecer práticas violentas e de ódio no país? Os discursos presidenciais têm contribuído significativamente para fortalecer práticas violentas e de ódio no país, especialmente no contexto da militarização e milicialização das cidades.

Incentivo à Violência e ao Armamento: Jair Bolsonaro adotou discursos que incentivavam a violência e o uso de armas de fogo pela população, promovendo uma cultura de confronto e agressão que pode alimentar práticas violentas e conflitos armados.

Desprezo pelos Direitos Humanos:  Os discursos presidenciais muitas vezes demonstram um desprezo pelos direitos humanos e pela dignidade das pessoas, o que pode legitimar práticas abusivas e violentas por parte das forças de segurança e de grupos milicianos.

Estímulo à Discriminação e ao Preconceito:  As falas do presidente também têm sido associadas a discursos discriminatórios e preconceituosos, que podem fomentar o ódio e a intolerância contra grupos minoritários, como a população jovem negra, contribuindo para a perpetuação de práticas violentas e discriminatórias.

Como esses fenômenos, militarização e milicialização das cidades, se manifestam na sociedade urbana?

Militarização: Manifestações da militarização incluem a atuação das polícias militares em operações de segurança, a presença de tropas militares em áreas urbanas, a adoção de estratégias e tecnologias militares para lidar com questões civis, entre outros. A militarização resulta em uma maior presença de armas de fogo, uso da força excessiva, violações de direitos humanos e uma abordagem pautada na lógica de guerra para lidar com problemas sociais.

Milicialização: Manifestações da milicialização incluem o controle de comunidades por milícias, a prestação de serviços ilegais de segurança, a extorsão de moradores, o envolvimento em atividades criminosas e a perpetuação de um sistema de poder. A milicialização resulta em um aumento da violência, da corrupção, da intimidação e do medo nas comunidades onde atuam, criando um ambiente de medo e vulnerabilidade para a população.

Discussão dos textos em aula[editar | editar código-fonte]

Os alunos levantaram algumas questões durante a apresentação do textos, vamos pontuar nessa seção algumas dessas considerações.

Na primeira rodada de comentários, discutimos sobre essa dupla representação da cidade do Rio de Janeiro pode ser vista em outros âmbitos, como na representação das agentes comunitárias. Foi conversado também sobre a construção da dicotomia favela x asfalto, muito presente no cotidiano da cidade.

Na segunda rodada de comentários, pensamos como que os grupos armados também atualizam os usos de tecnologia, ou seja, não são meros sujeitos passivos dos avanços tecnológicos estatais e possuem um setor de inteligência.

Refletimos a respeito do lançamento do Programa Cidade Integrada, que se vendem como substituto das UPPs, ainda que as UPPs continuem em funcionamento, o que demonstra a falta de uma plano política conciso para a questão da segurança pública, que ainda é pensada na lógica da reação.

Apontamos que a leitura do clima é um conceito abrangente, que se enquadra em outros temas, como clima propriamente dito, como por exemplo, saber que vai chover a ponto de ter riscos de desabamentos, ou na economia, saber se é um bom dia para realizar cobrança das vendas dos produtos.

Tivemos apontamentos importantes sobre como no país nossas Forças Armadas não estão nas fronteiras, mas são utilizadas nas favelas e demais espaços periféricos, uma marca da militarização dos espaços.

Por fim, em aula também compartilhamos sobre a experiência e a etnografia de diferentes pesquisadores, além de refletir sobre marcadores que apartam as áreas geridas por milícias e as áreas geridas por traficantes na cidade do Rio de Janeiro.

O tema desta aula foi apresentado pela Doutoranda Cíntia Maria Frazão, como especialista convidada, na 7° Conferência Municipal da Cidade de Guapimirim- RJ, no EIXO 3- Grandes Temas Transversais, conforme o texto base das conferências.

A Conferênca Municipal é o ponto de partida do fluxo das contribuições para a Conferência Nacional das Cidades, elas são espaços democráticos de debates coletivos para discussão de propostas de organização municipal. Sua principal característica é reunir governo e sociedade civil organizada para debater e decidir as prioridades nas Políticas Públicas nos próximos anos.

Debatedoras/es: Alex, Alyssa Trotte, Beatriz Araújo, Cintia Frazão e Lucas Carvalho.

Fala Cintia Frazão (vídeo)[editar | editar código-fonte]

Fala de Cintia Frazão na 7ª Conferência da Cidade de Guapimirim abordando o tema da militarização, controle policial e ineficácia das políticas de segurança:

Referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]

Bibliografia complementar[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]

Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Ver também[editar | editar código-fonte]