Renata Souza - Marielle Vive! Favelas na Reconstrução do País

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


Fala da deputada Renata Souza no evento "Marielle Vive! Favelas na Reconstrução do País", em março de 2023 na Fiocruz, em decorrência dos 5 anos do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Autoria: Renata Souza
Foto José Bismarck.
Foto José Bismarck.

Fala na íntegra[editar | editar código-fonte]

É muito representativo a gente está aqui na Biblioteca de Manguinhos e com essa mesa, tanto a mesa de abertura institucional que trouxa aqui a sua relevância e compromisso com a luta das favelas e periferias, então eu fico muito feliz de ouvir a mesa institucional e uma alegria enorme estar aqui com os nossos companheiros de luta também dentro do parlamento. As nossas Monicas, Cunha e Francisco, querido Saulo, a gente sabe da importância também de Nilópolis nesse processo, a gente falar em Baixada Fluminense com os desafios que nós temos. É central. E nossa querida Sonia que tem aí um papel fundamental de nos juntar sempre na construção de novas narrativas e discursos sobre as favelas.

“Pretoguês” e o combate ao racismo linguístico[editar | editar código-fonte]

É isso que representa o Dicionário de Favelas Marielle Franco. Lá atrás quando discutimos o Dicionário foi muito importante pensar nos verbetes e quais seriam os elementos e as narrativas que a gente teria nesse dicionário, a gente trazia a essencialidade também do "pretoguês", de falar neste dicionário a língua da favela, das periferias, a língua do povo preto, a língua do povo pobre. Então também trouxe esse desafio em termos de uma lógica de mudança radical num paradigma também do próprio Dicionário em si, nós que viemos da favela, da periferia, povo preto somos acusados o tempo inteiro de não sabermos falar, de não sabermos nos expressar e quando nós utilizamos toda uma linguagem que é do nosso cotidiano somos encarados como menos cultos ou que se utilizamos a linguagem do cotidiano da favela, a linguagem que todos nós compreendemos e compreendemos a linguagem da favela, só que existe má vontade, existe todo um preconceito linguístico que também é racismo linguístico. Então é fundamental que esse dicionário traga esses elementos que superem o racismo linguístico na nossa sociedade.

Feminicídio político[editar | editar código-fonte]

Marielle Franco quando se empolgou com a ideia do Dicionário de Favelas e também pode participar de maneira muito atuante, observar que cinco anos após o seu feminicídio político e eu estou falando aqui de linguagem, de narrativa e de criação de discursos. Por isso que eu criei o conceito de "feminicídio político". Precisamos dizer o que aconteceu com a Marielle e nós sabemos que no campo do direito, aquilo que não se nomeia, aquilo que não se caracteriza e se categoriza não existe.

E feminicídio político existe. Marielle foi vítima de um feminicídio político, assim como outras mulheres o foram. Como a própria Dorothy Stang que lutava pela terra lá no Pará. E evidentemente quando eu estou falando em feminicídio político eu não estou dizendo só sobre as mulheres que se encontram nesses espaços de poder que historicamente foram negados para nós, pretos e pretas, mulheres de favela, LGBTQIA+. Estou dizendo de mulheres que ousaram a desafiar os poderes estabelecidos para a transformação social. Nesse sentido, Dorothy Stang é essencialmente um dos feminicídios políticos mais contundentes desse Brasil do latifúndio. Nesse Brasil que nega a possibilidade dos nossos povos indígenas, quilombolas e caiçaras terem os seus espaços. Então entendam que o conceito de feminicídio político transborda na verdade um novo olhar sociopolítico e pedagógico do próprio Brasil, com a relação de violência com as suas mulheres que operam para transformação social.

E porque não dizer que a juíza Patrícia Acioli também foi vítima de um feminicídio político? Uma mulher que mais operou em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, a prisões de matadores, de milicianos daquele território foi assassinada na porta da sua casa com a bala do Estado, por agentes do Estado. É super importante que possamos pensar nesse sentido, porque eu que venho da favela da Maré e construí também o meu lugar na academia e esse lugar foi muito e é muito caro pra gente, povo preto que viemos, né Claudia Rose, de pré-vestibular comunitário, eu não porque estou na política nesse momento, não vou abrir mão de também pensar intelectualmente a realidade desse país. E por isso que eu desenvolvi esse conceito de feminicídio político no pós-doutorado, na UFF, justamente porque o lugar da mulher preta, favelada que cria também uma perspectiva de produção do conhecimento também é negado. E isso é muito importante para que a gente possa olhar esse espaço aqui da ciência, da tecnologia, que produz conhecimento, que produz vida, também pra produzir reflexões sobre essa sociedade que estruturalmente é racista, machista, misógina e LGBTfóbica.

Violência política de gênero[editar | editar código-fonte]

E quando falamos do racismo estrutural que organizou essa sociedade, que estipulou todas as instituições e também inviabilizou o reconhecimento de todas nós aqui nessa mesa enquanto sujeitos políticos que somos, diferente de ser sujeitados à política. É por isso que somos tão hostilizadas quando chegamos na política. E diferentes formas, seja como aconteceu e como acontece cotidianamente a violência política de gênero que tenta interditar as nossas ações, que tenta inviabilizar as nossas atuações, não é Mônica Francisco, que acompanhou muito bem o que foram todas as lutas na Comissão de Defesa dos Direitos Humanos. Nós denunciamos o Witzel, o ex-juiz, ex-governador, à ONU e à OEA por utilizar o helicóptero como plataforma de tiros. Quando a gente tinha um governo eleito sob a égide do conservadorismo, sob a égide da eliminação daqueles que eles consideram inimigos. E a favela é considerada inimiga. Então nesse sentindo é muito evidente que quando chegamos no parlamento não somos bem aceitos, não somos bem quistos.

Eu tive uma perseguição política muito dura na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, inclusive com pedido de cassação do nosso mandato e esse pedido de cassação vem publicamente quando o ex-governador, ex-juiz num encontro entre policiais civis e militares diz para eles: "Aquela deputada lá vamos cassar". Isso foi num evento público. Foi na primeira vez na história da República, porque eu como boa estudiosa fui olhar, que um governador pede a cassação de um parlamentar em público.

E isso revela o quanto que querem nos aniquilar, esse mesmo ex-governador, ex-juiz foi o cara que quebrou a placa de Marielle junto com dois outros hoje parlamentares e trogloditas que usam da violência política de gênero para inviabilizar mulheres como nós no parlamento. E aí é fundamental olhar que a perseguição dentro do parlamento se revela também para fora. Depois dali fui inviabilizada na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, porque incomodava muito, incomodava os poderes que dominam todos os dias a arma do estado para matar preto, pobre e favelado dentro das favelas.

E aí, é muito essencial quando observamos, eu passei os dois últimos anos da Assembleia Legislativa sem presidir nenhuma comissão e isso revela a tentativa de asfixiar a atuação no parlamento. E, olhar dessa forma e viabilizar também o quanto que esse parlamento não vai medir esforços de tentar nos inviabilizar, de tentar fazer com que esses mandatos não sejam renovados, como aconteceu com a própria querida Mônica Francisco. É olhar o quanto essa estrutura foi feita para nos esmagar. E precisamos ter estratégias coletivas para sair desse ciclo, porque a violência política de gênero pode redundar e desaguar num feminicídio político. É esse o tamanho da nossa responsabilidade enquanto sociedade. Não basta representatividade, ter um rosto preto e pobre dentro do parlamento se nós sociedade não damos as condições concretas para que esse rosto preto, esse corpo preto tenha condições de atuar dentro do parlamento.

E aí, não sou nenhuma defensora do parlamento como revolução, não é. Aquele é um espaço feito e construído para a manutenção de uma ordem aniquiladora das nossas existências. Mas é evidente também que precisamos disputar esse parlamento como disputou Marielle para outra lógica de ocupação desse espaço de poder.

Eles vão nos dar concessões de tempos em tempos, então foi dado uma concessão para Marielle estar lá, foi dado uma concessão para nós que estamos aqui nessa mesa estarmos lá. É por isso e pode ser um por vez, porque na lógica machista, racista, classista não pode ser várias mulheres pretas por vez. Porque também no campo da esquerda, no campo progressistas, no nosso campo, é muito difícil olhar a mulher preta na sua alteridade, na sua integridade, na sua individualidade. Quando olhamos as mulheres pretas colocadas no parlamento também houve todo um processo de homogeneização. Então "se tem uma mulher preta lá já tá bom, porque já tá representado": não!

Somos 56% da população brasileira de pretos e pretas. Somos 52% de mulheres, aonde estamos? Construindo a riqueza dessa país para que esse país utilize a concentração de renda para ter 33 milhões de pessoas passando fome e 10% dessas pessoas estão no estado do Rio de Janeiro. São 3 milhões de pessoas passando fome no estado do Rio de Janeiro. E a fome perfila uma mulher preta. Uma mulher preta que está dentro da favela e não tem o que dá para o seu filho. Então esse é o perfil essencialmente da miséria e da pobreza que se tenta perpetuar pela aniquilação dos nossos corpos, e aí a gente tá no mês da mulher, como não lembrar entre 2007 a 2017 aumentou em 30% o feminicídio de mulheres pretas. A gente tem um aumento vertiginoso no assassinato de jovens negros dentro das favelas e periferias. O governo hoje que está nesse estado foi eleito praticado chacinas dentro das favelas e periferias, demonstrado o seu poderio e a chacina virou uma metodologia eleitoral de manutenção do poder. É preciso que nós compreendamos isso. Reeleger o último governador federal com mais de 60% dos votos, isso significa que as chacinas também são processos de manutenção do pode e que elas funcionam. Agora onde erramos enquanto corpo político e luta política progressista no estado do Rio de Janeiro, no Brasil?

Protagonismo da favela[editar | editar código-fonte]

Erramos quando não olhamos a favela com as suas potências e os seus protagonismos. Erramos quando deixamos de fazer processos de formação política no território da favela, porque nós - campo da esquerda progressista- olhamos a favela com desdém. Achamos nós - campo progressista de uma elite branca e intelectualizada, também no campo da esquerda - olhamos a favela e nos consideramos os detentores da verdade, da luz e da vida. Essa lógica tem que mudar.

Nós precisamos olhar os movimentos sociais, as lutas nas favelas e periferias, como necessárias e fundamentais para a mudança de paradigmas na nossa sociedade. Precisamos olhar as potências das mulheres pretas, construindo a partir dos mutirões, muito bem lembrado pelo Richarlls, os mutirões que hoje não deixam as favelas morrerem de fome. Não deixam as favelas sucumbirem sem saneamento básico, sem acesso a educação e saúde de qualidade. Então são essas pessoas que constroem formas de ser e estar, apesar do Estado. Que estão, evidentemente, protagonizando as lutas das favelas.

Então o nosso campo precisa ter um olhar completamente diferenciado e cotidiano, porque a gente precisa dizer, eu comecei falando aqui, que nós estamos numa disputa de narrativas e discursos sociais. Comecei a minha fala justamente por conta da importância do Dicionário de Favelas Marielle Franco. E nessa disputa de narrativas estamos perdendo. Estamos perdendo a disputa de discursos, isso foi muito caro para o nosso povo nos últimos cinco, quatro anos com esse governo negacionista que, a partir de discursos falaciosos, fake news, conseguiu arregimentar uma gama de pessoas desinformadas. A informação liberta, mas a desinformação aprisiona e foi isso que aconteceu nos últimos anos nesse país.

Comunicação popular[editar | editar código-fonte]

E precisamos evidentemente ter os nossos instrumentos. Eu venho da comunicação comunitária, trabalhei no Jornal O Cidadão na Maré e tenho aqui nossas representantes O Cidadão, temos aqui também pessoas que constroem a comunicação audiovisual, meu querido Ratão, Dante, Liz. Que constroem um olhar específico sobre a favela, a partir do seu cotidiano. E é importante dizer que falar de um elemento tão sensível como é a comunicação, falar das rádios comunitárias, falar das TVs comunitárias, eu aqui na Fiocruz fiz parte da Rádio da ASFOC, que era a rádio de corredor aqui da Fiocruz, e foi muito importante pra mim, eu era uma moleque, devia ter quinze, dezesseis anos, mas a Fiocruz sempre parceira da Maré e do lado da Maré. Passei parte da minha juventude e adolescência dentro da Fiocruz, não só para vacinas, mas também para os cursos.

E aí é fundamental dizer que quando estamos disputando narrativas e discursos, precisamos ter instrumentos de comunicação. Então a gente está aqui evidentemente saudando um novo governo. A gente quer, pode e deve construir esse governo que não é negacionista, que traz exatamente a vacina como um elemento central pra nossa vida e esse lugar aqui é um lugar de produção de vida. Mas é evidente que não podemos cometer os mesmos erros. Que a gente cometa outros erros, não os mesmos. E aí é um perigo colocar o ministério da comunicação na mão daqueles que utilizam da fé numa lógica conservadora, neopentecostal, que encara a fé também como controle sobre os corpos, entregar o ministério da comunicação para esse grupo.

Nós que fizemos rádio comunicação comunitária sabemos da perseguição da ANATEL. Nós tivemos companheiros como Fiell da Rádio Santa Marta, né querido Itamar, preso dentro da Rádio. Ou seja, estamos a beira de perpetuar um erro histórico que não teve perdão para o Brasil. Não disputamos discursos e narrativas sobre essa sociedade e eu não tenho dúvida que os meios de comunicação são essenciais para essa disputa. Então a gente vai ter que batalhar para que esse erro não se perpetue nesse governo.

Favelas contra o coronavírus[editar | editar código-fonte]

Agora também muito importante observarmos que esse espaço aqui de debate constante com a favela protagonizando seu lugar é essencial. E Richarlls do programa de enfrentamento aos impactos da covid-19 nas favelas e periferias. Um programa que foi construído a muitas mãos. Em que a gente conseguiu trazer a PUC, né Burgos, Cunca, a UFRJ, trazemos a UFF, a UERJ, trazemos as lideranças comunitárias para dizerem o que nós precisávamos fazer para trabalhar num momento difícil para toda a humanidade, não é Alan Brum. Que desafiou a nossa humanidade. E que foi exatamente operar a partir de quem já estava fazendo.

Então o programa de enfrentamento aos impactos da covid nas favelas que teve como protagonismo a força de Nísia Trindade, então presidenta da Fiocruz, em trazer os recursos que nós conseguimos na Assembleia Legislativa para que esse programa fosse uma realidade no âmbito do estado do Rio de Janeiro. E que hoje a gente pode transformar esse programa num programa nacional e isso muito me orgulha. Porque a gente estava lá no dia 20 de março fazendo essa reunião, implicando a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro a se mexer e nós temos aí um programa onde a Fiocruz e o protagonismo da favela e da periferia foi essencial e a gente atendeu diretamente 200 mil pessoas. 80% do programa é essencialmente de segurança alimentar.

Então quando falamos e reivindicamos aqui a luta de Marielle Franco e o seu feminicídio político, cinco anos atrás, não tenha a descoberta dos seus mandantes, é porque a Marielle evidentemente seria essa pessoa que estaria protagonizando um programa como esse junto à Fiocruz. Eu tenho certeza disso. A Marielle desafiou os poderes estabelecidos, os status quo, que mantêm a subserviência nesse país do nosso povo preto, das nossas mulheres, da população LGBTQIA+.

Então nesse sentido, lançar hoje no Dicionário de Favelas Marielle Franco, quando o Estado brasileiro não nos apresentou quem mandou matar Marielle e porquê, significa que a nossa luta tem que ser também um desafio a própria democracia colocada. Feminicídio político da Marielle desafia a democracia política brasileira, desafia todos nós enquanto sujeitos e sujeitas na luta política. Desafia todos nós, defensores e defensoras dos direitos humanos. E amanhã no dia 14 de março, quando se completa cinco anos do feminicídio político de Marielle, é também o dia de luta e resistência de defensoras e defensores dos direitos humanos. Não só no estado, por força de lei de nossa autoria, mas também no Brasil. Então que nós passemos não só o mês de março perguntando “quem mandou matar Marielle Franco e Anderson?”, mas que nós exijamos do estado brasileiro que nos dê uma resposta.

Marielle Presente!

Evento na íntegra[editar | editar código-fonte]

Assista abaixo o evento com a fala da Renata e outras falas na íntegra:

Ver também[editar | editar código-fonte]