Mobilizações em Favelas para produção de conhecimentos
Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco e Bonde - Coletivo de pesquisa sobre violências, sociabilidades e mobilidades urbanas
Mobilizações nas favelas ontem e hoje
A mobilização coletiva em favelas existe desde que elas começaram a ser criadas há mais de um século. Desde a década de 1940, com a criação das primeiras associações de moradores, foram diversas as formas institucionais de sua agregação, que demarcaram diferentes estratégias de luta por direitos e, consequentemente, de relação com o poder público e com os demais atores sociais. As organizações supralocais e o próprio movimento mais amplo de favelados variou muito, ao longo da história, não somente de acordo com suas dinâmicas internas e locais, mas também com as conjunturas políticas nacionais.
A capacidade dessas associações de fazer exigências, sua autonomia de organização, sua cooperação com políticas estatais, assim como o nível de repressão e a criminalização de suas atividades, sempre dependeu de uma correlação de forças que se deu em ambiente altamente desfavorável para esses grupos sociais. Em um movimento com perdas e ganhos que Machado da Silva (2002) definiu como “controle negociado”, as organizações de favelas continuaram existindo e diversificaram-se em termos de pautas e formatos ao longo do tempo.
Com isso, novas formas de associação irão eclodir nesses espaços, sobretudo, as organizações não governamentais. Em um primeiro momento, essas ONGs eram organizadas por pessoas de fora das favelas, mas gradativamente os moradores desses locais passam a criar e gerir suas próprias organizações, as quais tinham objetivos diversos, entre eles um que ganhou força na década de 1990 foi “a da recuperação, preservação e divulgação de memórias das favelas” (Fleury e Menezes, 2022, p. 321). É sob esse novo contexto que conhecimento e memória ganham centralidade nos projetos conduzidos por ONGs e organizações de moradores.
Os anos 2000 trouxeram muitas mudanças com uma conjuntura de maior mobilidade social, sobretudo a partir dos efeitos de políticas públicas redistributivas e o aumento de novos coletivos e formas de organização em favelas (Aderaldo, 2013). Esse período é marcado pelo que Tiarajú D’Andrea (2013) chama de emergência de "sujeitos periféricos" conectados em rede com movimentos sociais, utilizando intensivamente tecnologias de informação para problematizar questões de identidade racial, classe e gênero, e que, por sua vez, também buscam reforçar sua representatividade política institucional via participação em partidos e em pleitos eleitorais.
Obviamente, não há como negar que a realidade vivenciada nesses territórios populares envolva subalternidade e múltiplas formas de opressão. No entanto, ainda assim, os sujeitos periféricos e favelados reforçam cada vez mais a condição de protagonistas da própria história, reivindicando direitos e compondo organizações populares voltadas para produção de conhecimentos e memórias em prol do seu território.
Mais recentemente, a pandemia da Covid-19 representou um ponto de inflexão nesse longo histórico de mobilização dos moradores de favelas e periferias. Entre 2020 e 2021, ações coletivas, articulações em redes e a produção própria e disseminação de dados e informações desses territórios - o chamado “nós por nós” - fortaleceram-se intensamente. Nesse período, a organização das favelas alcançou uma visibilidade sem precedentes em grandes jornais, revistas e mídias digitais.
O destaque recebido no debate público pode ser explicado: 1) pela rapidez e pelo alcance de ações que visavam a garantia da subsistência das pessoas (como doação de alimentos e materiais de limpeza) e a prevenção da disseminação do vírus (como sanitização das favelas); 2) mas também pela capacidade de articulação de redes (entre lideranças e grupos de diferentes favelas, instituições públicas, empresas privadas e organizações não-governamentais nacionais e internacionais), mobilizadas para produzir e difundir dados sobre incidência e mortalidade da Covid-19 nas favelas e periferias, bem como elaborar planos e campanhas comunitárias de combate à pandemia e prevenção da contaminação (Fleury e Menezes, 2020).
Portanto, é possível notar que, nas duas últimas décadas, multiplicaram-se iniciativas que visam ampliar os direitos de cidadania nas favelas e periferias do Rio de Janeiro. Um conjunto variado de atores coletivos buscam, por meio da cultura e do resgate da memória, disputar o significado de ser favelado(a). Ao introduzir questões relativas à raça, território e direito à cidade bem como inaugurar formas de representação coletivas - mandatas - os movimentos periféricos ressignificam a democracia. E, cada vez mais, moradores de favelas e periferias querem ter protagonismo na produção de conhecimentos, dados e memórias em relação aos territórios que habitam.
Ciclo de produção sobre produção de conhecimentos e memórias
Com o intuito de criar um espaço de encontros, trocas e reflexões coletivas sobre múltiplas iniciativas, experiências, estratégias e formas atuais de se produzir conhecimentos em favelas, o Dicionário de Favelas Marielle Franco (ICICT-Fiocruz), o BONDE (IESP-UERJ), o CIDADES - Núcleo de Pesquisa Urbana (PPCIS-UERJ), o Grupo Casa (IESP-UERJ), a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), o Instituto Raízes em Movimento e o Radar Saúde Favela (Fiocruz) organizaram no ano passado o Ciclo de debates sobre sobre produção de conhecimentos e memórias nas favelas e periferias do Rio de Janeiro. O evento incluiu cinco mesas que envolveram 20 pesquisadores/lideranças de favelas entre setembro e dezembro de 2023.
Todas as mesas foram gravadas, transcritas e estão sendo analisadas coletivamente com intuito de destacar a diversidade que constitui tais iniciativas em favelas, apontando como há uma multiplicidade de atores que atuam em cada localidade e de formas de se pesquisar, sistematizar e divulgar os conhecimentos que são produzidos nas favelas.
O ciclo incluiu cinco mesas temáticas: 1) Memórias e produção de conhecimentos sobre violências; 2) Memórias Faveladas e as Políticas Públicas; 3) Infraestrutura e meio ambiente; 4) Pandemia nas favelas; e 5) Censo de Favelas: produção autônoma de dados. A primeira e a quarta mesa foram realizadas no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), localizado em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, a segunda e a terceira mesas foram realizadas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), localizada no Maracanã, na Zona Norte do Rio de Janeiro. A última mesa foi realizada na Galeria Providência, localizada no Centro do Rio de Janeiro. Abaixo segue os grupos e seus respectivos representantes que participaram do ciclo:
Visão geral das mesas do Ciclo de Debates sobre produção de conhecimentos e memórias nas favelas e periferias