Wikifavelas no Outras Palavras: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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==''WikiFavelas'': Genealogias do funk carioca ==
==''WikiFavelas'': Genealogias do funk carioca ==
Por Norma Miranda. Publicado em 29 de março de 2023.
Por [[Usuário:Nsmiranda|Norma Miranda]]. Publicado em 29 de março de 2023.


Os vibrantes “bailes de corredor” dos anos 90 ressurgiram e canalizam a ''voz das favelas''. Texto mostra: mais que festa, são espaço de promoção de lazer e solidariedade das comunidades.
Os vibrantes “bailes de corredor” dos anos 90 ressurgiram e canalizam a ''voz das favelas''. Texto mostra: mais que festa, são espaço de promoção de lazer e solidariedade das comunidades.

Edição das 09h14min de 5 de maio de 2024

Este verbete reúne as publicações produzidas pela equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco para o veículo jornalístico Outras Palavras, como forma de divulgação do conteúdo da plataforma.

Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Sobre

A partir de Janeiro de 2022, a Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco passou a publicar textos no website Outras Palavras, como forma de divulgar os conteúdos presentes na Wikifavelas e também de fomentar discussões junto aos veículos de comunicação. No presente verbete, reunimos os materiais publicados nesse meio de informação que "discute Política, Mundo e Cultura e aposta no jornalismo de profundidade para encarar grandes assuntos nacionais e internacionais", para acesso público.

Rio: o que esperar das UPPs recauchutadas

Por Sonia Fleury e Juliana Kabad, em 24 de janeiro de 2022

Ocupação policial do Jacarezinho e Muzema repete erros velhos e graves: tentativa de controle, disciplinamento e subalternização da periferia. No Dicionário de Favelas Marielle Franco das Favelas, verbetes para compreender o desastre.

Foram muitos os erros que levaram ao fracasso do programa de pacificação das UPP nas favelas do Rio de Janeiro. Destacam-se a falta de planejamento da política pública, que levou a um grau exacerbado de improvisação, falta de treinamento adequado e de recursos que garantissem sua sustentabilidade, além de sua subordinação aos objetivos eleitoreiros dos políticos e aos interesses de lucratividade do mercado. A ocupação militar representou a instauração do estado de exceção nestes territórios, tendo sido identificada como pacificação apenas pela mídia e pelas classes médias e altas, ignorando os complexos problemas na raiz do crescimento da violência urbana.

Sem dúvida, o maior erro foi ter procurado mobilizar a população, organização e lideranças das favelas com o intuito de controlá-las, discipliná-las, subalternizá-las, fragilizá-las frente às ameaças de desforra pelos traficantes e milicianos. O começo de um novo programa que repete os mesmos erros mostra que os políticos não aprendem com os erros das políticas públicas. Mas o mesmo não se pode dizer da população das favelas, cuja frustração com os pífios resultados das UPPs tem sido um combustível para aumentar a consciência em relação às suas demandas.

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

Rio: violência policial, UPPs e racismo

Por Lia Rocha, publicado em 02 de fevereiro de 2022

Uma pessoa negra é morta pela polícia a cada 4 horas no Brasil. E o Rio de Janeiro é o estado que possui o maior número de pessoas negras mortas pela polícia. É o que o relatório da Rede de Observatórios da Segurança traz de dados através do estudo “Pele alvo: a cor da violência policial”, de dezembro de 2021. A violência é uma realidade das sociedades contemporâneas marcadas por processos de opressão e aprofundamento de desigualdades. A violência policial, porém, reforça ainda mais as opressões e o racismo que estruturam a ordem social brasileira. Políticas públicas que promovem a militarização dos territórios de favelas e periferias são responsáveis pelos altos índices de letalidade produzidos por ações de agentes estatais, justificados pela impunidade e pela difusão de uma cultura racista e preconceituosa. No momento em que o país se prepara para um processo de intenso debate eleitoral visando passar a limpo a desastrosa experiência recente na política de segurança e formular propostas para reinventar o  Brasil, precisamos encarar e discutir amplamente o racismo e a sua relação com a alta letalidade provocada pela ação policial.

O Dicionário de Favelas Marielle Franco pretende dar mais alcance a este debate, pois, a produção e divulgação de narrativas sobre as cotidianas violações e violências provocadas pelo Estado é também um instrumento para garantia de direitos de cidadania aos corpos e às vivências das populações negras. Na plataforma wikiFAVELAS, podem ser encontrados algumas dessas contranarrativas, disputadas por moradores(as) de favelas, defensores(as) de direitos humanos e pesquisadores(as) em verbetes como “Parem de nos matar!” e “Elemento suspeito”, da série de lives Favelas em Movimento. Em torno da palavra-chave “violência policial”, você também encontra cerca de 20 verbetes e outros debates relacionados.

As mortes cometidas por policiais muitas vezes são justificadas pela ideia de que vivemos “em guerra” nas cidades. Com essa mesma justificativa, intensifica-se cada vez mais, no Rio de Janeiro, um processo de militarização que inclui o uso de armas e equipamentos considerados “de guerra” na repressão ao crime, além de tecnologias de vigilância e controle para capturar elementos suspeitos. Tal militarização é apresentada como justificativa moral e ideológica que permite transformar todos os espaços em “campos de batalha”. Aqui, destacamos uma discussão sobre este debate, trazendo o verbete “Militarização”, publicado pela pesquisadora Lia Rocha.

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

O WikiFavelas e a luta popular contra a covid

Por Victória Henrique, em 10 de fevereiro de 2022

No Dicionário de Favelas Marielle Franco, pistas para compreender um fenômeno social que marcou os últimos dois anos: a mobilização das comunidades, que resistiu à sabotagem do governo e organizou a prevenção e o cuidado na pandemia

Mais de 25.000 novos casos de Covid surgiram em favelas no Rio de Janeiro nas últimas duas semanas segundo levantamento realizado pelo Painel Unificador Covid-19 nas Favelas, em parceria com a Fiocruz e outras 23 organizações comunitárias.  As favelas já somam mais de 159.992 casos e 7.978 óbitos desde julho de 2020. O rápido crescimento dos números do nas últimas semanas revela como a nova onda da pandemia vem atingindo moradores desses territórios da cidade.

As favelas no Brasil foram linha de frente no combate ao coronavírus desde o começo da pandemia. Em 2020, quando os primeiros casos de covid-19 foram diagnosticados no país, o Dicionário de Favelas Marielle Franco – wikifavelas.com.br – acompanhou a movimentações de instituições da sociedade civil e movimentos sociais para enfrentar a pandemia nos territórios onde os direitos fundamentais foram negados – inclusive o de se proteger contra a disseminação do vírus.

Criamos uma página especial sobre o coronavirus nas favelas, na qual mapeamos centenas de ações de solidariedade que foram organizadas para levar comida à casa de tantas famílias, além de iniciativas de comunicação comunitária que ajudaram a disseminar informações sobre o vírus, medidas de proteção e gestão do território. Reunimos também notícias sobre a pandemia nas favelas publicadas tanto pela mídia comercial como por mídias comunitárias. E divulgamos reflexões publicadas por moradores e pesquisadores sobre como o coronavírus afetou a vida nas periferias, além de cartas e documentos elaborados coletivamente para cobrar que o poder público produzisse algum plano para lidar com impactos da pandemia nas favelas e painéis com dados epidemiológicos sobre a incidência da doença e mortes, já que os dados oficiais subestimam a ocorrência nestes territórios. Veja os links para todas as páginas no final do artigo.

Em 2021, diferentes organizações reunidas no Painel Unificador que acompanha os casos de Covid-19 nas favelas subscreveram, por exemplo, uma carta ao poder público no Estado do Rio de Janeiro indicando medidas para conter a pandemia e estimular a vacinação nestes territórios. Um ano depois, poucas ações foram efetivamente implementadas pelos governantes nesse campo. Isso se refletiu no aumento da fome, da miséria, das taxas de desemprego e do acirramento da desigualdade no estado.

Algumas instituições, como a Fiocruz, lançaram iniciativas importantes de vacinação em massa (como o caso da Maré, feito em parceria com a Redes da Maré) e recentemente a testagem em massa nas favelas de Manguinhos e da Maré. Apesar de seu caráter restrito, puderam demonstrar que é possível desenvolver políticas públicas para vacinar e testar toda a população nas favelas e periferias. Mas, em 2022, começamos o ano com o preocupante aumento de casos, em razão da variante ômicron. Um novo ciclo de desafios se apresenta às favelas e periferias; agora sem apoio do auxílio emergencial e com uma baixa considerável nas doações realizadas às campanhas de solidariedade.

No Dicionário de Favelas Marielle Franco, podemos acompanhar um pouco dos rastros que a pandemia tem deixado pelas favelas do Brasil, como por exemplo no verbete que reproduz o artigo de Victória Henrique. O texto publicado originalmente pelo nosso parceiro RioOnWatch trata da importância do trabalho de organizações comunitárias diante do apagão de dados e do aumento de casos de Covid-19 causados pela ômicron.

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

WikiFavelas: Radiografia do poder miliciano

Por Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos, em 16 de fevereiro de 2022

Moïse Kabagambe, refugiado africano, trabalhador precarizado, negro, foi assassinado à luz do dia e aos olhos de muitos em um quiosque na orla da Barra Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Seu assassinato, pelas mãos de homens brancos a marretadas, nos conta um tanto sobre como o racismo estrutural deste país impede qualquer tipo de interação social do corpo negro sem ser criminalizado ou estigmatizado. Além disso, nos conta sobre os ilegalismos e suas territorialidades na cidade do Rio de Janeiro, diante do fato que de tal crime carrega como marca ter sido realizado (e naturalizado) em área de controle territorial das milícias.

As reações das autoridades governamentais foram esclarecedoras: por um lado, a demora da polícia em tomar providências para abertura do inquérito, o que só veio a ocorrer quando houve mobilização da família e da sociedade e, por outro lado, a tentativa do Prefeito Eduardo Paes de fazer do limão uma limonada, entregando os quiosques onde houve o linchamento aos familiares e outros membros da comunidade de imigrantes africanos. Ou seja, ao invés de banir a milícia do controle do território público das areias da praia, fazer proselitismo político colocando os imigrantes congoleses, anteriormente intimidados por membros da PM, em situação de maior vulnerabilidade diante da truculência dos milicianos. Tudo isso já seria suficiente para compreendermos como o poder se exerce sobre os corpos negros neste país, não fora a catastrófica intervenção do governo federal, através do presidente da Fundação Cultural Palmares, guardiã do legado da raça negra à sociedade brasileira, que culpabilizou a vítima ao dizer que se tratava apenas de um vagabundo morto por vagabundos mais fortes.

Um fenômeno particular às formas de gestão da sociabilidade violenta e dos ilegalismos no Rio de Janeiro, as milícias, como aponta José Cláudio Souza Alves no Dicionário de Favelas Marielle Franco, são grupos criminosos formados e chefiados por agentes de segurança do Estado. Estes grupos estabelecem o controle e o monopólio de serviços e bens a partir do controle armado de favelas, comunidades, bairros e cidades. Sua origem remonta ao surgimento, no final dos anos 1960, em plena ditadura empresarial-militar de 1964, dos Esquadrões da Morte, posteriormente denominados Grupos de Extermínio, que cometiam execuções sumárias, assassinando supostos “bandidos” e cobravam taxas de segurança na Baixada Fluminense. Atualmente, se expandem em novas áreas, novos negócios e novas práticas político-gerenciais.

Segundo nota técnica da Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos, publicada na plataforma wikiFAVELAS – a qual destacamos abaixo – a expansão das milícias por diferentes territórios populares do Rio de Janeiro nos últimos 20 anos:

alterou profundamente as relações de força antes caracterizadas pelas disputas territoriais entre as organizações rivais do tráfico do varejo de drogas, e pelos conflitos entre elas e a polícia. Com presença crescente em favelas e bairros suburbanos, bem como nas cidades do Grande Rio, a expansão das milícias foi redefinindo os termos da própria metáfora da “guerra”, tão presente no debate público do Rio de Janeiro entre nos anos de 1980 e 2000. Desde sua origem, os grupos milicianos procuraram se posicionar junto às populações dos territórios onde atuavam com um discurso de escudo em face do jugo do tráfico. Nesse sentido, construíram sua identidade originária como a de antagonistas do tráfico, valendo-se, para tanto, do fato de que a lógica da guerra, entre polícia e traficantes, era uma fonte permanente de insegurança e de infortúnio para os moradores das favelas. Desse modo, as operações policiais e as ostensivas guerras entre traficantes retroalimentavam o acúmulo de legitimidade da milícia. A evolução dessa dinâmica fez com que a milícia ganhasse uma velocidade endêmica no Rio de Janeiro, em pouco tempo se tornando uma fonte de acumulação de poder político e social e de riqueza econômica.

Falar em militarização é também falar em “milicianização”. A participação de policiais militares em ações de extermínio e extorsão e o controle territorial de áreas cada vez mais extensas, como a orla da Barra da Tijuca e outros bairros nobres da cidade, só reforçam a urgência em tratar deste fenômeno e suas consequências para a sociabilidade e a vida política da região metropolitana do Rio de Janeiro.

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

Direito à Moradia, à Terra e à Cidade

Por Movimentos Sociais Populares de Jacarepaguá e Fiocruz-Mata Atlântica, publicado em 23 de fevereiro de 2022

Mais de 300 entidades de todo o país estão organizando coletivamente a Conferência Popular pelo Direito à Cidade, que acontecerá nos dias 03, 04 e 05 de junho de 2022, em São Paulo. A conferência tem o objetivo de construir democraticamente uma plataforma de lutas urbanas voltada para o combate à desigualdade social e à predação ambiental. As entidades envolvidas na construção da conferência defendem a ideia de que não é possível se pensar na redemocratização do país sem que ocorra uma articulação nacional de agentes, atores e entidades vinculados à vida urbana e produção das cidades. Como é dito na carta que apresenta o Encontro Nacional pelo Direito à cidade:

Nesse momento de sobreposição de crises e regressões, é nosso papel recolocar horizontes e desbloquear o futuro que hoje se encontra interditado. É preciso fortalecer a luta pela democracia desde as cidades: nos bairros, nas escolas, nas igrejas e também nas universidades (…) É preciso disseminar a informação e travar a batalha de ideias, resgatar a utopia das cidades como lugar do viver juntos, como o espaço da vida em comum, onde todas e todos podem ser socialmente iguais, humanamente diferentes e livres de opressões, explorações e discriminações. Este horizonte de cidades justas é utópico, mas também realista e necessário”. Leia na íntegra a carta clicando aqui.

O tema das cidades no projeto nacional precisa ser debatido com urgência, especialmente, neste ano, por ocasião das eleições de 2022. E para subsidiar esse debate é fundamental lembrarmos de experiências antigas e recentes, acertos e erros, novos caminhos e formas de luta e organização da vida urbana.

No Dicionário de Favelas Marielle Franco reunimos várias experiências de lutas pela moradia como a organização de moradores da Região de Jacarepaguá no Rio de Janeiro que foram ouvidos pela equipe do projeto “Histórias, Memórias, Oralidades e Cartografia da Luta Social por Terra e Moradia na Região de Jacarepaguá“, realizado pelo PDCFMA – Programa de Desenvolvimento do Campus Fiocruz Mata Atlântica.

O projeto reuniu depoimentos de lideranças e protagonistas que estão na resistência das tensões dos interesses dos grandes investidores, do desenvolvimento especulativo e predatório. Esses depoimentos mostram como “o lugar dos pobres agora é o lugar dos ricos. E os ricos contam com a ação da polícia e de grupos armados para garantir seus negócios. Como também a grilagem e a milícia invadem e negociam terras públicas ou áreas de preservação ambiental, para especular e explorar os moradores”. Mais informações podem ser encontradas no verbete, disponível na íntegra na wikifavelas.

Em um desses depoimentos João Marco, diretor do CPJABA – Centro de Formação Profissionalizante do Jardim Boiúna e Adjacências conta que a luta dos moradores da região de Jacarepaguá por moradia envolveu a organização de diversas ocupações desde os anos 1970 até os anos 1990. Uma série de pressões e conflitos ocorreram tanto no momento da realização como no processo de manutenção das ocupações. Mas os moradores seguiram se organizando na região pois queriam (e muitos ainda querem) não apenas ficar no local, como também conquistar a documentação para regularizar a situação em que vivem. Como narra João:

No final de 1987 havia muitas pessoas pagando aluguel. Havia uma necessidade real, e pessoas do bairro eram contra. Muitas reuniões eram feitas na minha casa. Eram reuniões secretas e meu pai dava aprovação dele. As reuniões secretas tinham o objetivo de não vazar informações. Me lembro que a ultima reunião foi onze dias antes do meu casamento. E fechou-se que a ocupação no Boiúna seria naquele dia 13 de outubro de 1988, e aconteceu. E foi tratada toda estratégia de como ocupar, com resistir, tudo planejado. Não foi uma ocupação fácil. Teve polícia, com pessoas do bairro tentando comprar. Na época chegaram para mim perguntando por que eu estava andando à pé – “eu tenho um carro lá em casa que é sua cara”. Já naquela época, tentava-se comprar as pessoas, tudo para evitar pobres na Boiúna. Mas conseguimos consolidar. Hoje lá tem dez travessas – todas as dez travessas levam o nome de dez moradores, e já está registrada na SMTU (Secretaria Municipal de Transporte Urbano), que participaram ativamente. Uma delas teve o nome do Vavá, que era eletricista. Hoje nosso processo esta no urbanismo. Estamos sempre tentando reunião, mas nunca marca. (…) Naquela época eram trabalhadores que construíram suas casas, algumas ainda vivem no embrião. Acertamos com o secretário Jorge Bittar e estamos aguardando a escritura. Só depois de conseguir o RGI deixaremos de ser ocupação e nos tornamos parte da cidade como bairro.

As falas de João Marco e de outras lideranças como Maria Zélia Carneiro Dazzi, Presidente Associação de Moradores e Pescadores do Arroio Pavuna, evidenciam como parcelas mais pobres da população criam habitação, criam cidade diante da ausência de políticas públicas. No entanto, o poder público, por sua vez, ao invés de criar políticas de habitação, muitas vezes destrói habitações criadas com anos de suor e organização coletiva, torna ilegal a situação desses moradores e cria diversos ilegalismos com os quais eles têm que lidar. Como narra Maria Zélia a resistência se desdobra no tempo, envolvendo formas diversas de organização e politização:

O primeiro embate foi com o DNER (Departamento Nacional de Estradas e Rodagem). Depois veio em 1982, quando surgiu a primeira empreiteira que construiu o (Condomínio) Rio 2, demonstrando que nós incomodávamos. Como na época, ainda tinham muitos barracos, e muitos pescadores velhinhos, começaram os conflitos. Naquela época a gente não tinha conhecimento de que havia Defensoria Pública ou Ministério Público, a gente recorria aos políticos. Eles vinham, faziam reuniões, aí depois eles sumiam. A gente se acalmava. Em 92, um pouco antes da ECO, outro embate com as empreiteiras – ainda não era a prefeitura. Nós recorremos ao Saturnino Braga. E depois se acalma e a gente segue a vida. Quando foi em 2006, o embate foi mais forte. Retiraram parte da comunidade. Embora as pessoas falassem que foi por causa do PAN (Jogos Panamericanos), não teve nada a ver com o PAN: retiraram parte da comunidade, para fazer o acesso para o condomínio Rio 2 e para o que estão construindo agora, o Cidade Jardim. A comunidade, embora não fosse mais barracos e com casas até com piscinas, eles tiraram. As terras – antes eram da aeronáutica – nesta época já existia o ITERJ, mas a prefeitura veio derrubar e o ITERJ não fez nada. Saíram 68 casas. A comunidade foi sendo dividida aos poucos, com o ponto de madeira, concreto, depois outra. Em 2006, lá então foi demolido.

Todas as idas e vindas nesse processo de luta pela habitação, embora gere uma acumulação de saberes, gera também um enorme desgaste nos moradores que precisam viver com pressões, ameaças e uma constante indeterminação. Os processos de criminalização da luta marcam profundamente as experiências subjetivas dessas mulheres e homens como narra Maria Zélia:

Meu marido era um homem politizado desde a ditadura. Eu participava das lutas com ele. Em 2007, quando a prefeitura veio fazer o mesmo que fez do outro lado – porque sempre foi o desejo lá do outro lado que a gente saísse – eu já estava prevenida. Primeiro passo, depois que vieram fotografar, foi tirar medidas das casas, e a assistente social fazendo cadastro. Eu perguntei pra quê, ela não respondeu. Enquanto isto um funcionário da prefeitura entrou na casa, fotografando tudo. Eram 8 horas da manhã, meu marido ainda estava na cama. Entrou sem falar nada. Aquilo me deu uma revolta tão grande! E do meu lado, enquanto eu respondia as perguntas, estava um guarda municipal, com os braços cruzados pra traz, me olhava o tempo todo, como se eu fora uma criminosa. Choro até hoje, isto me marca profundamente.

Todas essas experiências fazem esses moradores sentirem que não tem direito à cidade. Como sintetizou Maria Zélia: “é como se a gente não pertencesse à cidade, como se nosso direito fosse só o de trabalhar pra eles. Mas nós estamos aqui prontos para enfrentar toda guerra para ficar aqui”. Apresentamos abaixo, a entrevista completa de José Jorge dos Santos de Oliveira, membro do MUP (Movimento de União Popular). O depoimento nos convida a repensar o modo como o direito à cidade pode e deve ser trabalhado a partir de práticas e conflitos cotidianos que permeiam a vida daqueles que precisam lutar para ter onde morar. Como bem sintetiza José Jorge:

“Eu costumo dizer que existem movimentos sociais por causa da ineficiência, da irresponsabilidade e da falta de caráter de quem tinha que cuidar daquilo que ele foi eleito para fazer mas não fazem, e ganham muito bem pra isto, com dinheiro dos outros. Então existem os movimentos sociais, onde não se tem tempo pra nada, tem que trabalhar desesperadamente pra comer e pra beber, mas tem que arrumar tempo para conversar sobre seus direitos.”

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

WikiFavelas: para quem o Estado mostra os dentes

Por Silvia Ramos, Itamar Silva, Diego Francisco e Pedro Paulo da Silva, publicado em 16 de março de 2022

Somente nos últimos sete dias, dois casos de injúria racial cometidos no Rio de Janeiro ganharam espaço na mídia e nas redes sociais. Igor Palhano, dentista, de 30 anos, foi impedido de sair de um shopping da zona oeste antes de comprovar com documentos a propriedade de sua moto. Quatro dias depois, a empresária Sarah Fonseca, de 28 anos, foi interceptada por um segurança “da associação de lojistas do bairro” ao abordar seu próprio namorado e sua sogra, que tomavam café numa padaria de Ipanema, na zona sul do Rio, sob a alegação de que estaria “pedindo dinheiro ou importunando”. Talvez os casos não tivessem tanta repercussão se não envolvessem vítimas com alguma visibilidade: Igor é filho do sambista e humorista Mussum, e Sarah – que é influencer digital com mais de 600 mil seguidores no Instagram – mesmo muito abalada conseguiu reunir forças para denunciar o episódio racista em tempo real nas suas redes. Os dois casos foram registrados na Delegacia de Combate a Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), mas, conforme apontam os resultados da pesquisa Elemento Suspeito, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), eles engrossam uma realidade comum e muito pouco notificada, pela qual os jovens negros passam diariamente ao ir e vir pela cidade.

Achille Mbembe (2014, p.197) explica que a raça é uma moeda icônica, que aparece por ocasião de um comércio dos olhares. “É uma moeda cuja função é converter o que se vê (ou o que prefere não ver) em uma espécie ou um símbolo no interior de uma economia geral dos signos e das imagens que se trocam, que circulam, às quais se atribui ou não valor e que autorizam uma série de juízos e de atitudes práticas”.

O verbete do Dicionário de Favelas Marielle Franco, sobre a pesquisa Elemento Suspeito destaca a dimensão do trauma coletivo que representam as abordagens infundadas e violentas a jovens negros no Rio de Janeiro, que só nos dias atuais vêm sendo explicitamente relacionadas à questão do racismo estrutural da sociedade brasileira. A incidência do indicador de Idade, Gênero, Classe, Cor e Território (IGCCT), criado pelos pesquisadores do CESeC, reforça essa dura realidade: apesar dos casos que ganharam espaço na mídia serem de jovens de classe média/alta, os “elementos suspeitos” de antemão, são mais homens do que mulheres, mais negros do que brancos, mais pobres, mais jovens e mais moradores de favelas e bairros de periferia do que a média da cidade.

Todo esse conjunto de evidências deveria ser mais do que suficiente para tornar inegável que o Estado brasileiro tem no racismo um pilar fundamental de sua lógica de funcionamento. A abordagem da polícia ou das forças de segurança privada é apenas uma ponta desse sistema, que se consolida no encarceramento em massa da população negra. Segundo Juliana Borges (2019), dois em cada três presos são negros, a maioria na condição de presos provisórios – ou seja, ainda aguardando julgamento. No outro extremo dessa engrenagem, por sua vez, encontramos a desmobilização e desconsideração da legislação antirracista por parte de promotores e juízes. Em 2016, pesquisadoras do Afro Cebrap analisaram os bancos de dados de decisões de tribunais de justiça de nove estados brasileiros, e identificaram que a maioria dos casos que envolviam o proferimento de insultos raciais acabavam classificados como “injúria simples” ou “ofensa à dignidade ou decoro de alguém”. Em geral os magistrados alegam ausência de provas sobre a intenção deliberada de discriminar racialmente para que esses casos fossem enquadrados como “injúria racial”.

Se uma das grandes vitórias dos movimentos negros brasileiros é o fato de que racismo aparece como crime inafiançável e imprescritível na Constituição Federal, a realidade nos mostra que ainda estamos muito longe de fazer valer a letra da lei. Em artigo de opinião magistral, Conrado Hubner argumenta que existe uma “Constituição não escrita da brutalidade brasileira” onde “todos são iguais perante a lei, exceto pretos, etc.”; e onde “preto se presume suspeito até prova robusta em contrário”. A pesquisa Elemento Suspeito se debruça exatamente sobre as manifestações dessa norma “oculta” que organiza os comportamentos das forças do Estado brasileiro, retroalimentando desigualdades a partir da discriminação racial.

Introdução elaborada pelo Dicionário de Favelas.

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

WikiFavelas: O avanço do racismo algorítmico no Brasil

Em diferentes cidades do Brasil, avançam propostas de utilização de mecanismos de reconhecimento facial nas políticas públicas de segurança. Em Vitória, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e vários outros locais, com preocupação vemos o sistema de reconhecimento facial servir como uma ferramenta de impulsionamento do encarceramento em massa.

Pesquisadores e ativistas apontam que tais mecanismos têm um problema estrutural: são alimentados por bases de dados que reproduzem desigualdades raciais, fazendo com que mais pessoas negras sejam identificadas como suspeitas, descortinando uma discussão em torno do “racismo algorítmico”.

Um breve retorno à história da criminologia no Brasil nos revela que não é nova a constituição de um perfil que seria considerado criminoso apenas por existir; um arquétipo suspeito. E, com um olhar cuidadoso aos atores mobilizados pelas políticas contemporâneas de segurança pública, podemos notar que Lombroso, Garófalo e Ferri [pensadores da Escola Positiva Italiana] não morreram; pelo contrário: se fazem presentes nos bancos de dados que alimentam os sistemas de reconhecimento facial, se fazem presentes nos operadores das políticas públicas de segurança e se fazem presente na estrutura de Estado. Em 2019, mais de 90% dos presos por reconhecimento facial no Brasil eram pessoas negras. O combo racismo + proibicionsimo segue tornando a liberdade um horizonte distante da vida de jovens negros e pobres no nosso país.

No Dicionário de Favelas Marielle Franco, podemos entender alguns dos efeitos do encarceramento na vida da população pobre, negra e moradora de favelas e periferias. Um dos exemplos é o verbete “Lutar não é Crime”, onde fica explicitado como a estrutura de estado, por meio de sistema de justiça e sistema prisional, age nas favelas e periferias em um horizonte de violação de direitos e inviabilização da existência digna de determinadas populações, notadamente negros e negras. Nem sempre tais ações foram arquitetadas a partir das tecnologias de reconhecimento facial, mas, sem dúvidas, os receios tornam-se ainda maiores com o desenvolvimento tecnológico do aparato de repressão.

Cabe-nos ampliar a discussão, deslocando os olhares que pensam que, a priori, a tecnologia de reconhecimento facial é boa ou ruim, convocando todos e todas a discutirem do que é constituída tal tecnologia, descortinando jogos de interesse, entendendo quem as controla e quais objetivos diferentes tecnologias podem assumir numa sociedade estruturada pelo racismo. Muitas discussões tentam abrir caminhos para o tema, seja pensando uma moratória no reconhecimento facial, seja pelas acusações de tecnoautoritarismo. Talvez, para o começo de uma conversa franca sobre o assunto, a gente tenha que assumir duas bandeiras como comuns: não podemos aceitar reedições da ideia de “perigosos natos” nem podemos aceitar movimentações no campo da segurança pública que aprofundem desigualdades e injustiças sociais.

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

WikiFavelas: cursinhos populares e as rotas rebeldes

Por Angela Cristina da Silva Santos, publicado em 06 de abril de 2022.

No Dicionário Marielle Franco, as lutas para democratizar o Ensino Superior através dos pré-vestibulares. Eles vão além do conteúdo curricular: tornam-se espaço de afetos e resistências — e instigam jovens periféricos a se conectar ao mundo

O ano de 2022 será decisivo em vários aspectos. No contexto das campanhas eleitorais, campanhas para as juventudes participarem da política também se somam, através de artistas, ativistas e educadores, a uma onda de necessária conscientização sobre a importância das eleições deste ano para o Brasil. E é também neste momento que a comunicação com as juventudes e o próprio acesso a uma educação crítica e transformadora ganham destaque no debate público: 2022 é o ano da implementação do Novo Ensino Médio, e da revisão da política de cotas nas universidades públicas.

A “lei de cotas” – como popularmente é conhecida – foi sancionada em agosto de 2012, após experiências consideradas satisfatórias em instituições públicas de ensino superior. O texto prevê que: i) 50% das vagas oferecidas em cada curso de graduação devem ser destinadas a alunos que cursaram o ensino médio integralmente na rede pública; ii) dessas vagas, pelo menos 50% devem ser preenchidas por estudantes com renda familiar per capita inferior a 1,5 salário mínimo; iii) o preenchimento dessas vagas deve seguir a mesma proporção de pessoas pretas, pardas, indígenas e com deficiência da unidade da Federação onde fica instituição de ensino, seguindo os dados do censo mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nestas duas décadas, houve um aumento de 9,8% no número de estudantes negros e pardos, de 10,7% de estudantes de escolas públicas e 14,9% de estudantes de nível socioeconômico mais baixo em universidades, segundo a revista Economics of Education. Além disso, pela primeira vez na história, a maior universidade pública do país, a Universidade de São Paulo (USP), tem mais alunos que vieram de escolas públicas. Em 2021, eles foram 51,7% do total de estudantes. Alguns desses resultados podem ser acompanhados através do verbete “Ações Afirmativas no acesso ao Ensino Superior”, de Laís Müller. Parlamentares favoráveis à pauta, por exemplo, têm receio de que o debate em meio à campanha eleitoral deste ano provoque “retrocesso” na lei e defendem o adiamento da revisão.

Ao mesmo tempo, os caminhos que levam os jovens ao ensino superior, para além do filtro social do vestibular, têm sido mais afunilados. O Novo Ensino Médio é resultado da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBI) por meio da lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, e começa a ser implementado de forma gradual a partir deste ano nas redes públicas de ensino. Entre as mudanças, estão o aumento da carga horária, uma nova grade curricular pautada em “itinerários formativos” e um ensino voltado para a formação técnica e profissional. Sem diálogo com professores(as) e estudantes(as), parte das mudanças dão margem ao desenvolvimento de currículos muito distintos entre os estados e, assim, podem aprofundar a desigualdade educacional regional, sobretudo para jovens pobres e periféricos.

No centro dessa disputa sobre os rumos da educação brasileira, é fundamental considerar a influência de um dos mais importantes movimentos populares do Brasil do começo do século XXI: o movimento de pré-vestibulares populares, ou pré-vestibulares comunitários. Desde os anos 2000, acompanhando a criação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e fortalecendo as lutas pela democratização do acesso ao ensino superior no país, os pré-vestibulares populares emergiram e se consolidaram como espaços fundamentais de formação profissional e cidadã, onde as juventudes periféricas se conectam não apenas com os conteúdos curriculares mas com o mundo à sua volta. É, inclusive, na atuação de pré-vestibulares populares nas favelas e periferias do país, por meio de iniciativas da sociedade civil organizada, que a política de cotas encontra seus resultados – levando mais jovens pretos e pretas para as cadeiras das universidades. Como aponta Angela Cristina da Silva Santos, do Fórum de Pré-Vestibulares Populares do Rio de Janeiro, “a atuação dos pré-vestibulares populares tem sido extremamente importante, tanto na formação política desses sujeitos, quanto na contribuição para que eles acessem à educação superior e se desenvolvam na educação, pesquisa e extensão, resgatando ou construindo novas epistemologias”. A formação política é indissociável da prática de pré-vestibulares populares, atuando também na cena política nacional como ator político na defesa da inclusão racial e social dos jovens das periferias, como é o caso da Rede Educafro.

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No WikiFavelas, a potência da Comunicação Popular

Por Luisa Santiago, publicado em 20 de abril de 2022.

Em ano eleitoral, será preciso superar o atraso e disputar a internet com a ultradireita, sugere o Dicionário Marielle Franco. Teia de mídias alternativas será crucial na batalha para desbaratar fake news e articular a resistência das periferias

“A potencialidade política da internet ainda não chegou a muitos processos de resistência” – alerta o verbete sobre a Teia de Comunicação Popular do Brasil, no Dicionário de Favelas Marielle Franco. Em tempos de “pós-verdade”, onde bastam pouco cliques para que se multiplique a desinformação promovida pelas “fake news”, a frase chama atenção para uma das principais pautas a serem reforçadas na contemporaneidade: mais do que nunca, é preciso fortalecer, apoiar e qualificar as iniciativas faveladas e periféricas no campo da comunicação popular contra-hegemônica.

Embora ainda pouco conhecidas pelo grande público, as iniciativas de comunicação popular de favelas e periferias têm uma extensa trajetória histórica, que vai desde a produção por mimeógrafos – como foi a da Revista Nós, da Cidade de Deus, entre 1977 a 1980 – à realização de pesquisas locais, com produção de dados e outros insumos audiovisuais para disputar narrativas com a imprensa formal e o próprio Estado sobre o que acontece, de fato, nas favelas. Esse é o objetivo, por exemplo, do LabJaca – Favela Gerando Dados, criado em 2020 na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro.

Tais iniciativas, portanto, não se propõem apenas a comunicar, mas também a organizar politicamente seus(as) leitores(as) para percepção, crítica e transformação da realidade em que vivem. No contexto de dois anos de combate à pandemia de covid-19 no Brasil, por exemplo, o Dicionário de Favelas Marielle Franco buscou contribuir para essa luta histórica, apoiando os coletivos envolvidos na produção de informação popular sobre a emergência sanitária, e reuniu pesquisas, reportagens, fotos, vídeos, comentários, artigos, ensaios e reflexões acadêmicas sobre os impactos do coronavírus nas favelas. No âmbito desse projeto, foi possível construir uma base de dados aberta com 783 notícias sobre coronavírus nas favelas, ordenadas segundo os tipos de veículos onde foram publicadas – mídia comunitária, imprensa comercial, imprensa alternativa (que não necessariamente possui vinculação territorial) e portais institucionais públicos e privados.

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WikiFavelas: as tecnologias reinventadas pela periferia

Por Pâmela Passos, publicado em 04 de maio de 2022.

Elas são essenciais à formação cidadã, aponta o Dicionário Marielle Franco. De inovações na economia solidária a lan houses, alçadas a espaços de encontro e cultura digital das juventudes, elas mostram saídas às distopias tecnológicas

As tecnologias são marcadas por uma ambivalência. Podem ser tanto utilizadas para dominação como para libertação. Em outra matéria relatamos casos de racismo algorítmico e monitoramento por vídeo, o que mostra como as tecnologias digitais podem ter um papel de repressão e impulsionamento do encarceramento em massa da população favelada. Por outro lado, as tecnologias digitais também podem se configurar como meios para visibilizar as potências e denunciar os problemas das favelas. Neste artigo apresentamos algumas iniciativas que utilizam as tecnologias digitais para promover a sociabilidade nas favelas e expressar a realidade dos moradores.

Conforme Beatriz Carvalho explica, “a forma que a internet chega nas periferias cariocas quase sempre é precária”, assim, o projeto Mulheres de Frente produz cursos, consultorias, palestras e oficinas que envolvam tecnologia digital, com objetivo de prover às mulheres acesso à cultura digital na Baixada Fluminense e na Zona Oeste. O Pipas Labs Casa Voz por sua vez atua com crianças e jovens do Complexo do Alemão na “experimentação lúdica e inovação tecnológica”. A maioria dessas iniciativas são realizadas por organizações sociais, sendo que algumas recebem apoio de governos ou empresas. Um exemplo de iniciativa em parceria com governo são as Fábricas de Cultura que realizam atividades artísticas, mantém bibliotecas e também produções de artes digitais. Essas iniciativas são um ponto de encontro da juventude e, assim, possibilitam a exploração de novas formas de sociabilidade, utilizando a internet como meio de expressão.

O empreendedorismo digital é outro elemento que mobiliza as favelas. A Favela Inc realiza capacitações nas áreas de “gestão de negócios, educação financeira, marketing digital e desenvolvimento pessoal”. A plataforma digital Transformadores também busca “trabalhar o fortalecimento da imagem das comunidades e de seus moradores, enfatizando casos de sucesso e o potencial dessas áreas urbanas, com o intuito de atrair mais negócios, ampliar os que já existem nessas regiões e mitigar o preconceito na contratação de moradores de comunidades”. O empreendedorismo é uma questão controversa. Embora a ideia de autoempregabilidade possa ser vista como uma nova forma de precarização, não se pode ignorar que esse assunto é parte das realidades nas favelas e as tecnologias digitais são um meio para realização dessas atividades empreendedoras. Uma alternativa é pensar o desenvolvimento econômico e a resiliência local a partir da economia solidária, como faz, por exemplo, o Banco Comunitário do Preventório.

Por fim, a expressão digital também é marca das favelas. Uma vez que as comunicações digitais diminuíram os custos para produção e emissão de conteúdo (hoje pode-se fazer um vídeo e rapidamente divulgá-lo no YouTube), diversas iniciativas de comunicação digital emergiram nas favelas. Um exemplo é a plataforma Bombozila que surgiu quando “durante as Olimpíadas de 2016 do Rio de Janeiro, um grupo de jornalistas e midiativistas de toda a América Latina se uniram para documentar os abusos cometidos antes e durante o megaevento”. Outro exemplo é a rádio Web Manguinhos Livre, uma iniciativa do Ecomuseu de Manguinhos em parceria com estudantes de ensino médio do Colégio Estadual Clóvis Monteiro.

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WikiFavelas: O racismo religioso de cada dia

Por Carolina Rocha, publicado em 18 de maio de 2022.

No Dicionário Marielle Franco, a perseguição às religiões de matrizes afros. Mais que “ignorância” ou “resquício da escravidão”, ela é produto das engrenagens do capitalismo — e de ordem social e racionalidade coloniais que buscam legitimá-la

Exu venceu o carnaval. A história do orixá do movimento e da comunicação foi contada na avenida em uma homenagem feita pelo Acadêmicos do Grande Rio neste ano que acabou ganhando o título do carnaval carioca. Depois de um ano sem desfile de escolas de samba, devido à pandemia da covid-19, o samba-enredo da Grande Rio ganhou destaque não só na avenida, mas também no debate público que passou a ter Exu como foco.

Muitos jornais, revistas, programas televisivos e sites passaram a falar sobre essa complexa entidade que, com frequência, é temida e pouco compreendida. Carolina Rocha, que é doutora em sociologia, historiadora, escritora e pesquisadora, explica em sua tese a dificuldade que muitos possuem de compreender Exu. Ela lembra que as sociedades de matriz africana possuem conjuntos de valores, de crenças e uma forma de construção de conhecimento e sentido de mundo que não opera em uma lógica binária e dualista, tal como a lógica ocidental. Compreender Exu torna-se difícil nas sociedades ocidentais porque nelas o pensamento baseia-se, com frequência, em binarismos e dicotomias como bem e mal, Deus e o Diabo, certo e errado, homem e mulher, público e privado, sagrado e profano, etc.

“O orixá transgride os padrões vigentes ao representar o movimento, a comunicação, o corpo, a fluidez e a expansão, em detrimento de padrões simétricos com vistas à homogeneidade e à previsibilidade. A encruzilhada extrapola e desobedece às expectativas de controle, tal como as práticas humanas, que, mesmo sujeitas a tantas violências, a formatações, a institucionalizações e a regras, se contorcem em manobras, por vezes sutis, inesperadas e insurgentes, nas frestas, nas brechas e nas lacunas”, aponta Carolina Rocha.

A partir da brecha aberta pela vitória da Grande Rio, Exu virou não só centro das atenções no debate sobre carnaval, mas também tema de um projeto de lei apresentado na Câmara do Rio de Janeiro. O vereador Átila Nunes (PSD) propôs que a entidade se torne patrimônio do Rio. A ideia é que o projeto de lei ajude a desmistificar a imagem da entidade e com isso contr Vale lembrar que, em março desse ano, a vereadora Benny Briolly (PSOL) apresentou, um projeto de lei na Câmara de Niterói, na Região Metropolitana do Rio, para a criação do dia municipal de Maria Mulambo, entidade das espiritualidades de matriz africana que representa proteção e abertura de caminhos. Ela sugere que a pombagira se torne a protetora do município de Niterói, por ser símbolo de força feminina negra e também apoio aos mais vulneráveis em uma sociedade excludente. Na ocasião de apresentação do projeto na Câmara, contudo, ela foi vaiada e xingada. E afirmou: “Salve Jesus Cristo, Salve Buda, Salve Nossa Senhora, mas salve também a minha senhora Maria Mulambo, rainha, e salve o Estado Laico”.

Esse episódio expressa um pouco da intolerância e o racismo religioso que perpassam a vida de moradores de favelas e periferias do Rio de Janeiro e do Brasil constantemente, uma vez que boa parte de terreiros que sofrem violência localizam-se nesses territórios. Todavia, como lembra Carolina Rocha, em texto publicado originalmente no blog do ISER, a ideia de que o grande algoz dos cultos afro-brasileiros é o “traficante” ou o pastor, que as manchetes dos jornais sugerem, é insuficiente para dar conta de um fenômeno tão complexo e extenso, com raízes tão profundas em nossa mentalidade e em nossa história.

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WikiFavelas: Nos slams, a voz insubmissa das quebradas

Por Marcos Lopes Campos, publicado em 15 de junho de 2022.

Dicionário Marielle Franco radiografa batalhas de poesia marginal. Como elas borram fronteiras entre arte, cultura e política. A “responsa” de jurados e poetas. Porque são espaços de cura e solidariedade, apesar da competição.

“A cultura é uma necessidade invisível. Ninguém fala, ninguém faz… mas quando alguém faz a coisa se alastra” (Mauí)

Cultura é a linguagem, a estética, o cotidiano, os vínculos e as produções coletivas que representam a sociabilidade de um grupo (ou povo). E, como parte da cultura de favelas e periferias, sujeitas e sujeitos periféricos têm criado formas autênticas de arte e denúncia a partir das brechas deixadas pelo Estado. Em seus trabalhos, Tiaraju D’Andrea, por exemplo, conta essa história de afirmação e positivação da identidade das juventudes faveladas e periféricas. Tais identidades são construídas cotidianamente mais além da polarização entre carências e potências, e se concretizam sob a forma de manifestações culturais e estéticas que problematizam questões de classe, raça e gênero. São múltiplas as formas em que essas questões são abordadas em letras de música e dança, numa estética poética própria ligada a movimentos como o hip-hop e o funk, e chegam, dentre outros tantos formatos, até as batalhas de slams e do passinho.

O premiado filme SLAM: Voz de Levante, das diretoras Tatiana Lohmann e Roberta Estrela D’alva, apresenta o fenômeno dos “poetry slams” americanos e sua recepção na cena brasileira desde 2008. O documentário registra o crescimento das Batalhas de Slam no Brasil e acompanha a campeã brasileira de 2016, Luz Ribeiro, até a Copa do Mundo de Slam em Paris, representando a nova onda feminista e negra que tem feito dessa manifestação artística um veículo de politização no campo popular.

De fato, apesar das dificuldades envolvidas na ausência de incentivo e valorização da cultura favelada e periférica, movimentos culturais proliferam-se movidos principalmente pela ambição de superar o imaginário social de favelas e periferias como lugares de carência, reafirmando-os como espaços de resistência e potência. É o que contam algumas e alguns dos artistas com os quais o Dicionário de Favelas Marielle Franco conversou nos últimos anos.

Na live Cultura e Políticas nas favelas e periferias (Live), que integra a série Favelas em Movimento, organizada entre 2020 e 2021, Andrea Bak, multiartista e estudante de química, fala dos aprendizados que atravessaram sua participação nos grupos de Rap Neftaris Vandal e no coletivo Slam das Minas RJ. Segundo ela, a arte chegou na sua vida a partir de uma ação política, quando em 2017, no contexto dos movimentos de ocupação das escolas de ensino médio da rede pública, ela – então estudante da Faetec – conheceu o Movimento de Slam. “O movimento social me levou ao movimento cultural e hoje eu não consigo fazer um sem fazer outro”, diz ela.

Andrea explica que o movimento slam surgiu nos EUA e, ao chegar no Brasil, acabou tornando-se um fenômeno entre a juventude, principalmente a juventude de favela. Os temas das poesias declamadas e interpretadas nesses espaços reivindicam a vida da população preta e de todas as minorias. Ela destaca, ainda, que em 2018, no contexto da mais conturbada eleição política da história recente, o movimento slam foi essencial para recuperar aquela juventude que estava sendo manipulada pelas ideologias fascistas a partir da onda das fake news. Diante da enxurrada de (des)informações das redes sociais, as batalhas de slam de bairros e favelas promoveu, na prática, uma disputa de narrativas, possibilitando a troca de informações e a defesa de valores ligados aos direitos humanos. Tudo isso através da fala, das rodas, do olho no olho – “ou seja, na nossa linguagem”, completa Andrea.

“A cultura é um agente transformador, tanto para expressar e vomitar o que às vezes tá sufocando, quanto pra se conscientizar, pra se organizar” (Andrea Bak)

Cria do morro da Caixa D’água, em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro, Sabrina Azevedo é mais uma artista que começou a movimentar seu território porque viu que existia um vazio cultural no lugar, e descobriu no slam uma forma de combater o racismo. Na Live Cultura na Periferia, que integra a série Favelas, pandemias e cidadanias (um projeto conjunto da Universidade da Cidadania da UFRJ, do Urbano – Laboratório de Estudos da Cidade do IFCS/UFRJ e do Dicionário de Favelas Marielle Franco), ela discutiu ao lado de Oberdan Mendonça, de Realengo, e de Mauí, de Duque de Caxias, a importância e os desafios da juventude promotora de cultura nas favelas e periferias.

Sabrina se autodenomina “artivista” e destaca que foi através da poesia e do stand up que começou a se entender como mulher preta, com uma ligação com a favela. Foi politizando o seu discurso para brancos e pretos que ela começou a desconstruir o chamado “racismo recreativo” da maior parte das piadas mais comuns na sociedade, e entendeu que nunca foi tímida: na verdade ela estava silenciada. Seu ativismo é fazer a galera “pegar a visão” através de um humor de qualidade e antes de tudo, antirracista.

Sabrina destaca que os investimentos em cultura geralmente não são direcionados para a zona oeste do Rio de Janeiro, e que diversos movimentos já tentaram ser implementados, mas acabaram sendo interrompidos. Ela diz que tomou a iniciativa de movimentar culturalmente a região da Taquara e logo percebeu que “envolver a molecada” é um ato de resistência que vale a pena e logo se multiplica. Para Mauí, os movimentos culturais começam com poucos, mas logo se deparam com uma demanda muito maior de pessoas interessadas. E destaca: “fazer cultura é uma luta emocional, financeira… é uma quebração todo dia na cabeça do jovem”.

É neste sentido, por exemplo, que Marcos Campos discute a vida das juventudes periféricas como um “entre-slams”: o sociólogo reflete sobre a experiência de um poeta periférico a partir de sua fala, que destaca a centralidade do slam na interpretação do ritmo de sua vida. Isto é, as batalhas de slam possibilitam a inserção da vida cotidiana em uma temporalidade particular e produtora de horizontes de futuro. A arte é também “trampo”, “cura”, “responsa” e faz parte do “corre” de sujeitas e sujeitos que sistematicamente têm sido jogados em um mundo sem trabalho e sem muitas expectativas.

E, para trazer um pouco mais dessa reflexão e do cotidiano dos “corres”, destacamos o verbete “Batalha de slam”, produzido por Marcos Campos para o Dicionário de Favelas Marielle Franco.

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WikiFavelas: Convite à política e poética dos mutirões

Por Mariana D. Bittencourt Nepomuceno, publicado em 13 de julho de 2022.

Dicionário Marielle Franco mostra: construção autogestionada de moradia pode ser ponto de partida para a emancipação. Desafia as lógicas de alienação do trabalho — e comunidades tornam-se guardiãs do território, a partir do Comum e do direito à cidade

“Fortalecemos a ideia de que uma nova concepção de cidade vem sendo construída todos os dias a partir dos saberes indígenas, das experiências das ocupações urbanas, hortas familiares e comunitárias, feiras populares, grupos e movimentos de base, saraus, atividades socioculturais, artísticas, esportivas e recreativas periféricas, quilombos, iniciativas de economia solidária e tantas outras formas de construção do poder popular”

Carta da Conferência Popular pelo Direito à Cidade (2022)

O mês de junho de 2022 esteve marcado por discussões nacionais em torno da pauta da reforma urbana através da construção de uma Plataforma de Luta Popular pelo Direito à Cidade. Após mais de dez meses de debates, eventos preparatórios e uma construção coletiva que envolveu milhares de pessoas, de todos os cantos do país, a Conferência Popular pelo Direito à Cidade, que aconteceu em São Paulo no mês de junho, reuniu mais de 600 delegados e resultou em 16 propostas claras rumo à democratização do espaço urbano e à defesa do direito à cidade no Brasil.

Num contexto de recuperação da importância da trajetória histórica de organizações e povos que impulsionaram essa luta, o Dicionário de Favelas Marielle Franco une-se à essa bandeira e convida os leitores do Outras Palavras a conhecerem um pouco mais sobre uma das mais genuínas tecnologias sociais que dão materialidade à luta por direito à cidade no país: o Mutirão.

No verbete elaborado por Mariana Diniz Bittencourt Nepomuceno, e reproduzido abaixo, a autora conta a história desse modelo tipicamente brasileiro e latino-americano de auto-organização social e coletiva. Focado na construção e produção de melhorias em habitações populares, nos dias atuais, o mutirão é um dos pilares da práxis dos maiores movimentos sociais latino-americanos, indo desde a construção de espaços coletivos comuns – como praças, quintais, áreas de lazer e cozinhas comunitárias – até a pactuação de regras e a construção de infraestrutura para uso e distribuição de recursos naturais, como a água. Seus usos e desdobramentos dialogam diretamente com o tema do Comum, um dos assuntos mais candentes do debate sociológico contemporâneo.

Termo de origem indígena, a palavra “mutirão” reflete a tradição de trabalho coletivo solidário que remonta aos povos originários e rurais da América Latina, tendo sido utilizado já no século XIX por associações de ajuda mútua e coletivos negros na luta por autonomia ao longo do inacabado processo de abolição da escravidão, e desembocando nas favelas e periferias de todo o país, no século XX, como alternativa às dinâmicas opressoras da expansão do capitalismo associado à urbanização seletiva.

Segundo Stavros Stavrides, um dos principais teóricos do Comum aplicado ao urbano, que pesquisou a fundo os movimentos de moradia no Brasil, Argentina e México, os mutirões são uma tecnologia social participativa, de traços decoloniais, que na perspectiva do “buen vivir” latino-americano, coloca a comunidade não como usuária ou proprietária dos espaços, mas como guardiã do território. Para além do esforço legítimo em demandar direitos ao Estado, o mutirão na construção de espaços e recursos comuns representa uma inovação nas formas de viver, atuando enquanto instrumento do poder público (em sentido amplo), e sem a intenção de produzir ilhas de isolamento comunitário. Fernanda Pernasetti resume o pensamento de Stravides ao apontar que sua compreensão do Comum não se refere a coisas, serviços ou recursos: trata-se de relações sociais definidas para si por comunidades específicas. O que está em questão para a construção dessas comunidades, portanto, é “o que” compartilhar entre seus membros e “como”, ou seja, quais seriam as regras a orientar esse compartilhamento.

Essa perspectiva se diferencia da ideia original de Commons, da economista americana Elinor Ostrom, ao afastar-se de uma imagem que remete a comunidades estáveis, com regras comuns definidas de maneira funcional, de modo a construir fronteiras de proteção. A abordagem de Stavrides propõe repensar a ideia de recursos, de regras e até mesmo a noção de comunidade, aproximando-se do entendimento do Comum como um caminho para a emancipação social humana, uma vez que enfatiza a prática da organização social que vai além dos padrões capitalistas, visando superá-los. Nessa, recursos não são dados, são relações dinâmicas cujas condições demoram a ser construídas e deflagram processos. A água, por exemplo, não é um common good (bem comum) nesse caso, mas torna-se um tema de comunização quando um contexto específico estabelece os recursos hídricos como uma necessidade, definindo sua distribuição sob determinadas condições e sob determinadas relações sociais. Comunidades rurais, por exemplo, vão falar de água de forma diferente das sociedades urbanas, e isso se aplica de forma geral a diversos outros recursos naturais sob a égide da comunização. Outro elemento fundamental que integra essa concepção de Comum é o fato de que as regras que regem as relações sociais nesses contextos devem ser feitas por aqueles que realmente participam das comunidades e não por membros de instituições externas. Para Stavrides, regras são processos em si mesmos, um trabalho a ser feito. Já a comunidade não se refere à tradicional imagem de grupos fechados ou estáveis: não importa quão democrática internamente ela seja, se suas relações sociais são limitadas e a comunidade se torna um enclave, a ideia de comunização morre. Sendo assim, o Comum só pode sobreviver em comunidades emergentes e criativas, que constroem sua autonomia num sentido não-tradicional. Um importante traço desse tipo de perspectiva é que as comunidades constroem sua independência ao definir suas próprias regras e permanecerem abertas às potencialidades de novos membros. Sendo assim, a comunidade se cria, se sustenta e não apenas repete tradições, mas segue aberta ao mundo exterior, explorando formas de autogoverno e de compartilhamento sob contextos de solidariedade e mutualidade.

Nos mutirões do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), por exemplo, ficam evidentes tanto o caráter pedagógico-freireano dos canteiros de obra – como momentos de grande aprendizagem para os participantes mutirantes – quanto a importância de que os produtos desses esforços coletivos não sejam circunscritos a determinados indivíduos ou usuários. Nesse sentido, os mutirões autogestionários são produtores de ideias e de formas valiosas de entendimento sobre como uma sociedade emancipatória deve ser construída. Um instrumento metodológico e prático fundamental na luta pela reforma urbana e pelo direito à cidade no Brasil.

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WikiFavelas: Cartografias insurgentes nas periferias

Por Mapeadores Comunitários do Preventório, publicado em 27 de julho de 2022.

O Dicionário Marielle Franco mostra caso emblemático de mapeamento comunitário. Propõe antropofagia digital: combater apagamentos e resssignificar tecnologias livres através de ativismo local, escuta coletiva e desejo de transformação.

Os mapas historicamente foram construídos por especialistas. Inicialmente produzidos por viajantes e depois por cartógrafos, com advento das tecnologias digitais atualmente são produzidos por satélites e complexas infraestruturas tecnológicas que registram, processam e disponibilizam imagens cartográficas, como, por exemplo, mapas de países, de cidades e até do desmatamento na Amazônia.

Se mapas por um lado possuem um caráter científico e tecnológico, por outro, podem evidenciar ou invisibilizar possibilidades econômicas, sociais e políticas. Dependendo da informação registrada, um mapa pode mostrar pontos comerciais de anunciantes, ou ignorar serviços públicos e projetos sociais que não possuem recursos financeiros ou técnicos para se apresentarem nessas tecnologias.

Assumindo que as tecnologias de construção de mapas não são neutras e podem ser usadas pela sociedade, os mapeadores comunitários da equipe do projeto Urbelatam, conforme descrito no verbete Mapeamento no Preventório, se propõem a fazer cartografias em favelas. Como eles dizem: “nosso trabalho é desenhar ou melhor redesenhar mapas nesses territórios” e assim “produzir coletivamente conhecimentos em favelas”.

“Apesar dos ‘fazedores’ de mapas cidadãos produzirem mapas abertos de forma colaborativa e voluntária, algo de grande valor, eles são adeptos de uma visão de mundo mais alinhado com a crença que as ciências e tecnologias são neutras e positivas, enquanto nós acreditamos que os efeitos positivos, negativos ou nulos das ciências e das tecnologias dependem de onde, de quando e por quem elas são desenvolvidas.

Os mapeadores comunitários, contudo, não se opõem às outras iniciativas. Na verdade, se apoiam nas tecnologias existentes (Open Street Maps, Kudos, HOT Tasking Manager, entre outras) e buscam “transgredir algumas assimetrias e opressões embutidas nessas ferramentas em favor de uma produção de conhecimentos que faça sentido para o território, que tenha a cara, o jeito e a voz de quem vive o território”. Assim, usando tecnologias livres, cria-se um espaço comum de construção de saberes com abertura para novas pessoas.

O mapeamento comunitário do Preventório se disseminou por outras favelas, como são os casos dos coletivos participantes do projeto Tamo Junto. Cinco coletivos produziram mapas comunitários nas favelas da Cidade de Deus, Providência, Borel, Santa Cruz e Rocinha. Por meio desse diálogo com outros grupos, os mapeadores comunitários buscam, além de aumentar a visibilidade dos territórios, ampliar a redes de mapeadores. Para tanto, baseiam-se em uma proposta sociotécnica que a comunidade e a tecnologia se co-constroem em movimentos conjuntos e emergentes.

Além disso, as iniciativas de mapeamento comunitário se assemelham a outras cartografias e mapeamentos registradas no Dicionário de Favelas, como o Mapeamento de Favelas “desconhecidas”, os Mapas Afetivos, o Mapa da Rede Favela Sustentável, o Mapa dos Grupos Armados no Rio de Janeiro, a Cartografia da Luta Social na Região de Jacarepaguá, e o mapa de Homenagens à Marielle Franco. Essas iniciativas buscam registrar e apresentar espacialmente diferentes aspectos culturais, sociais, econômicos e políticos das favelas. Ela se complementa e evidencia informações a partir do olhar dos próprios moradores.

Em um contexto mais amplo, os mapeadores comunitários se juntam a outras formas de transformação social que foram relatadas aqui no Outras Palavras e estão registradas no Dicionário de Favelas Marielle Francos. Por exemplo, a Comunicação Popular, os cursinhos populares, as tecnologias reinventadas e os mutirões. Essas iniciativas se apropriam de tecnologias existentes para transformar as realidades das favelas.

As iniciativas listadas mostrar como as tecnologias cartográficas, inicialmente criadas para serem usadas por engenheiros e cientistas, podem ser reinventadas e democratizadas pela sociedade e assim potencializar as ações de grupos que lutam pela melhoria da vida nas favelas.

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WikiFavelas: Memórias e lutas das mulheres na refavela

Por Cleonice Dias, publicado em 10 de agosto de 2022.

Dicionário Marielle Franco narra a trajetória combativa de uma liderança da Cidade de Deus. Ela mostra que o resgate da história local, a alegria e o senso coletivo podem coser lutas sociais e comunidade. Mulheres e jovens estão na linha de frente desta trama.

“Um símbolo de resistência e de amor”. Assim Anielle Franco define a estátua de Marielle Franco inaugurada no Centro do Rio de Janeiro no último dia 27 de julho. Na data, Marielle completaria 43 anos. Leonina, como ela gostava de lembrar sempre, a vereadora tornou-se símbolo de milhares de lutas por justiça mundo afora e agora Marielle está eternizada no Buraco do Lume, local que foi intensamente ocupado por ela, toda sexta-feira, em suas prestações de conta semanais de seu mandato como vereadora da cidade do Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A inauguração da estátua nos lembra que as mulheres negras estão ocupando o poder mais do que nunca e têm um papel histórico na linha de frente das resistências Brasil afora.

Ao longo das últimas décadas, tornou-se impossível falar em resistência e memória nas/das favelas sem fazer referência à organização de mulheres como forma de resposta à violências que são perpetradas diariamente pelo estado. Em função do acirramento das políticas públicas de segurança altamente letais, vemos mais coletivos surgindo como resposta às duras e violentas chacinas. Um exemplo são os movimentos criados em resposta às chacinas ocorridas no Rio de Janeiro no último período, quase integralmente protagonizados por mulheres, muitas delas mães vítimas de violência de estado.

Algumas das protagonistas dessas lutas foram homenageadas, na semana em que se comemorou o Dia da Mulher Negra, Latinoamericana e Caribenha, com a inauguração do Memorial Mulheres Negras e Faveladas na Luta Contra a Militarização. Situado na subida do Morro da Mangueira, o memorial – idealizado pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial – ratifica e reconhece a luta das mulheres que estão na linha de frente pelo direito à vida nos territórios favelados, além de transformar as nossas lutas em memórias vivas, como sintetizou Gizele Martins, uma das homenageadas.

A estátua de Marielle e o memorial das Mulheres Negras e Faveladas na Luta Contra a Militarização são exemplos de muitas outras iniciativas que têm surgido nos últimos anos para fortalecer a luta pelo direito à memória e pela celebração da identidade favelada. Vale lembrar que a memória é um processo em construção permanente que ocorre por meio dos atos de transmitir e de receber, passando pela nominação que expressa o reconhecimento da existência do outro (Candau, 2016). Já o processo de identificação se situa no binômio transmissão (via socialização) e recepção, de forma transitória e incompleta, mas não passiva, já que implica no acionamento, seja do esquecimento, seja da lembrança. Como aponta Hall, “a identidade torna-se uma “celebração móvel” formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente” (Hall, 2006 apud Souza, 2014: 13).

Trata-se de um processo dialógico dentro de uma comunidade que partilha sentidos. Sendo a memória mais um enquadramento do que uma reconstituição fiel, memória e identidade se entrecruzam, pois não há busca identitária sem memória, assim como a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade (Candau, 2016: 9 e 19).

No processo de construção de identidades, é possível notar “o fenômeno no qual cada vez mais há a incorporação de grupos tidos como marginais à memória nacional por meio de sua mobilização em um contexto de construir caminhos para obtenção de direitos” (Amoroso, 2015: 106). Na visão de Grynspan e Pandolfi (2007), essa situação tem alterado a própria noção de patrimônio histórico e cultural, uma vez que novas memórias, como as das moradoras de favelas, têm reivindicado seu espaço para existir na arena pública (Heymann, 2007).

Como lembram Fleury e Menezes (2022), no caso das favelas, a permanente construção de uma memória coletiva sobre esses territórios é parte do processo de positivação da identidade da população favelada, bem como da luta pelo reconhecimento e pelos direitos de cidadania a uma cidade inclusiva. Nesse sentido, a luta pelo direto à memória nas — e das — favelas não pode ser compreendida sem que lembremos o quanto os moradores desses territórios tiveram — e ainda têm — de lutar para (re)existir e mostrar que a favela e os favelados, além de carências, também possuem múltiplas potências. Isso ainda é necessário porque, há mais de um século, esses territórios fazem parte da paisagem carioca e são tratados no debate público como um problema para a cidade.

O pesquisador do Dicionário de Favelas Marielle Franco, Gabriel Nunes, em seu Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – intitulado “Memórias faveladas: as narrativas de Cleonice e Marilene sobre si e seus territórios” – defende que para lutar contra o epistemicídio e a subalternização dos saberes negros, femininos e periféricos, é “fundamental iniciativas que dêem visibilidade para outras experiências de vida e de saberes, ultrapassando a lógica colonial da individualidade e fortalecendo o senso de coletividade. Este fortalecimento passa necessariamente pela tomada de consciência da memória ancestral dos territórios e dos povos, processo que revela potencialidades e permite pensar novos caminhos para um outro futuro”.

No Dicionário de Favelas Marielle Franco, podemos acompanhar muitas histórias de resistência de moradoras de favela. Destacamos hoje uma entrevista publicada no Wikifavelas que foi realizada por Gabriel Nunes – como parte de seu TCC – com Cleonice Dias, importante liderança comunitária da Cidade de Deus, que foi uma das idealizadoras do Dicionário de Favelas e faz parte da equipe do projeto. A entrevista apresenta Cleonice não só a partir de suas singularidades, mas principalmente a partir de seus pertencimentos, de seus fortes vínculos com a família, os vizinhos, a comunidade e a cidade. Apresentar essa história repleta de conquistas, afetos, solidariedade, lutas e resistências, a partir da própria voz de Cleo é uma opção política que visa dar espaço a outras narrativas de construção da cidade que não retratam as favelas somente a partir do signo da falta ou da morte, mas sobretudo a partir a vida que pulsa nas favelas e em suas moradoras.

Verbete: Cleonice Dias, a aprendiz da Cidade de Deus (entrevista)

Autor: Gabriel Nunes Nobre

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WikiFavelas: Mitos e engodos da favela-empreendedora

Por Fernanda Pernasetti, publicado em 24 de agosto de 2022.

Alguns a reivindicam como potência periférica e contraponto aos estigmas de carência, mostra o Dicionário Marielle Franco. Mas ela instrumentaliza a precariedade — e substitui lutas coletivas e políticas sociais pela competição neoliberal.

O combate à pandemia consagrou a potência e a criatividade dos moradores das favelas e periferias, bandeiras defendidas pelos militantes desses territórios nas últimas décadas, recusando sua identificação exclusivamente pelas carências que, se bem existem e devam ser superadas, não são o núcleo definidor de suas identidades. O êxito das iniciativas de lideranças e moradores foram lastreadas na vivência de problemas comuns e na mobilização da solidariedade, que sempre se constituíram no maior recurso propulsor das ações coletivas nas periferias. Fazem parte desse cenário a emergência de inúmeros coletivos de jovens, reunidos em torno de manifestações político-culturais, que proliferaram mesmo diante da hegemonia do neoliberalismo e da difusão dos valores individualistas. O próprio uso do termo coletivos indica uma posição política voltada para o Comum e a solidariedade.

Chama atenção que a intensa organização nas periferias no combate à pandemia – mobilização de recursos, gestão territorial, comunicação e difusão de informações, produção de dados epidemiológicos – não tenha gerado maior investimento por parte dos partidos políticos, renovando suas práticas tradicionais de relação com as populações das favelas, em busca da construção de soluções de economia solidária e de inovações nas práticas e formas sociabilidade em torno do comum. Ao que parece, empresários de dentro e fora das favelas passaram a tratar esses territórios como uma boa oportunidade de expansão do mercado, propugnando as vantagens da busca de lucro como forma de melhoria da qualidade de vida daqueles contemplados com financiamentos para suas iniciativas empresariais.

O combate à pandemia consagrou a potência e a criatividade dos moradores das favelas e periferias, bandeiras defendidas pelos militantes desses territórios nas últimas décadas, recusando sua identificação exclusivamente pelas carências que, se bem existem e devam ser superadas, não são o núcleo definidor de suas identidades. O êxito das iniciativas de lideranças e moradores foram lastreadas na vivência de problemas comuns e na mobilização da solidariedade, que sempre se constituíram no maior recurso propulsor das ações coletivas nas periferias. Fazem parte desse cenário a emergência de inúmeros coletivos de jovens, reunidos em torno de manifestações político-culturais, que proliferaram mesmo diante da hegemonia do neoliberalismo e da difusão dos valores individualistas. O próprio uso do termo coletivos indica uma posição política voltada para o Comum e a solidariedade.

Chama atenção que a intensa organização nas periferias no combate à pandemia – mobilização de recursos, gestão territorial, comunicação e difusão de informações, produção de dados epidemiológicos – não tenha gerado maior investimento por parte dos partidos políticos, renovando suas práticas tradicionais de relação com as populações das favelas, em busca da construção de soluções de economia solidária e de inovações nas práticas e formas sociabilidade em torno do comum. Ao que parece, empresários de dentro e fora das favelas passaram a tratar esses territórios como uma boa oportunidade de expansão do mercado, propugnando as vantagens da busca de lucro como forma de melhoria da qualidade de vida daqueles contemplados com financiamentos para suas iniciativas empresariais.

A importância de discutir a ideologia do empreendedorismo é amplificada pela conjuntura eleitoral, na qual o debate político deveria estar bebendo da experiência das favelas e periferias para pensar a possibilidade de uma política do cotidiano, que valorize a construção de práticas comuns e solidárias, articulando as políticas públicas com as inovações que germinam nas periferias e precisam ser sustentáveis. No entanto, o que estamos observando é a contaminação da ideologia do empreendedorismo nos programas dos candidatos e a expansão da lógica mercantil da acumulação nos territórios das favelas.

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Wikifavelas: Eleições e a máquina de moer gente preta

Por Observatório do Cidade Integrada, publicado em 19 de outubro de 2022.

O Dicionário Marielle Franco apresenta análise do programa Cidade Integrada — uma ocupação territorial de comunidades cariocas. A pretexto de coordenar ações do Estado, polícia invade casas, revista celulares, pratica furtos e abusos de menor.

São muitas as máquinas de moer gente preta em funcionamento no Brasil. Há poucas semanas, discutimos aqui sobre como as chacinas em favelas no Rio de Janeiro se tornaram uma prática rotineira no campo das políticas públicas de segurança, especialmente nos últimos anos. No entanto, ainda que a cidade carioca ocupe um lugar particular nessa dinâmica nacional de militarização da vida, as violações de direitos repetem-se em todo o país, em maior ou menor intensidade, com diferentes tecnologias e orientações. O que não muda é seu alvo comum: a população negra.

Em recente levantamento realizado pela Rede de Observatórios da Segurança nos estados da Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo é possível observar como as práticas de violência articulam-se em rede e assumem múltiplas feições: guerra às drogas, naturalização das violências, vitimização e encarceramento de jovens negros, violência contra mulheres, aumento das taxas de violência, recordes de mortes e efeitos das violências de gênero nas crianças. Cada uma dessas temáticas reflete o perfil predominante (e não exaustivo) da violência identificada em cada estado. Apesar das diversidades regionais, as violações de direito no Brasil se conectam por dois elementos: o primeiro, como já dito, é o perfil das vítimas de violência (inclusive letal) concentrado na população negra, em especial o jovem homem negro. A partir dos dados mapeados é possível entender como o racismo opera sobre as práticas sociais de modo a estruturar e incidir violentamente sobre corpos de forma seletiva. O segundo elemento, um pouco menos discutido, está ligado à persistência do colonialismo na nossa sociedade, uma vez que a branquitude, enquanto racionalidade dominante, não apenas protege pessoas brancas da vulnerabilidade às violências, como transforma práticas violentas em instrumentos de manutenção de privilégios e de uma hierarquia social baseada no critério racial. Neste país, pessoas negras e pobres têm seus locais sociais muito bem delimitados. Por muito tempo, estiveram fora das universidades e dos espaços de produção do conhecimento, fora dos papeis de destaque na mídia e fora da política institucional, ou seja, fora de qualquer espaço de poder e prestígio.

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WikiFavelas: O presente do futuro dos jovens periféricos

Por Dicionário de Favelas Marielle Franco, publicado em 05 de outubro de 2022.

Dicionário Marielle Franco mostra os dramas e anseios das crias da quebrada. A escola é espaço de disputa – e mobilização. “Tirar venda dos olhos” vai além de luta por políticas públicas: alia sonhos coletivos e novas lógicas solidárias.

Nascido e produzido por jovens militantes das periferias do Rio de Janeiro, o Programa Papo na Laje se apresenta como um programa televisivo interessado nas múltiplas experiências de protagonismo das juventudes de favelas e periferias do estado. Diante das diferentes linguagens da comunicação popular e comunitária, seus idealizadores promovem encontros entre diferentes atores com distintas inserções sociais para “resenhas” que se transformam em episódios temáticos. Como o nome do programa evidencia, o cenário dessas resenhas é a favela, do topo das lajes das casas de moradores(as). Por isso, toda quinta-feira, às 18 horas, estreia um novo episódio no canal da TV Comunitária do Rio de Janeiro (TVCRio) e no YouTube, e o programa já está em sua segunda temporada de gravações. Dando destaque para a trajetória de cada um(a) dos convidados(as), o programa visa conhecer as ações e os sonhos que os movimentam, além de visibilizar organizações que já atuam nesses territórios, fortalecendo o contato e intercâmbio entre os movimentos sociais em atuação.

Segundo seus idealizadores, o Papo na Laje surgiu da convergência de percursos formativos e de vida de alguns sujeitos envolvidos na produção: alguns ligados ao Movimento Sem Terra (MST) e ao Brasil de Fato, e outros que já acumulavam diferentes experiências com juventudes, como a participação no Levante Popular da Juventude e em programas do governo federal, como o ProJovem. Dessa convergência surgiu a vontade de debater não somente as violências praticadas por agentes do Estado que os jovens sofrem nas grandes regiões metropolitanas, mas também as violências ligadas à negação de direitos como o direito ao trabalho, ao lazer, à cultura, à educação e à saúde. Essas são as primeiras preocupações, inquietações e conversas da equipe do projeto.

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WikiFavelas: A chacina sem capuz

Por Daniel Hirata, Carolina Grillo, Diogo Lyra e Renato Dirk, publicado em 21 de setembro de 2022.

Dicionário Marielle Franco analisa a estatização da morte no Grande Rio. Com premiação de policiais violentos, massacres tornaram-se cotidianos – e converteram-se em arma contra qualquer tentativa de controle democrático da segurança pública.


Um dia antes de ser assassinada a tiros na região central do Rio de Janeiro, em 2018, Marielle Franco, cria da Maré, defensora dos direitos humanos e vereadora pelo PSOL na cidade do Rio de Janeiro, entoou em suas redes sociais a pergunta que ecoa em nossos ouvidos até os dias atuais: “Quantos mais vão precisar morrer para que esta guerra acabe?”. De lá até aqui, a política de segurança pública do estado do Rio experimentou intervenções federais, operações policiais e programas de militarização que sitiaram as cidades e foram capazes de promover um fenômeno ainda mais perigoso na Região Metropolitana: a expansão das milícias. Segundo o relatório “Mapa Histórico dos Grupos Armados” (2022), produzido pelo GENI/UFF em parceria com o Fogo Cruzado, as áreas dominadas pelas milícias cresceram 387% em 16 anos, e milicianos já dominam mais da metade das áreas controladas por grupos armados na região. Os ilegalismos e a perpetuação da “guerra às drogas” têm produzido graves consequências para a vida dos moradores e moradoras do Rio de Janeiro.

Em tempos decisivos para a democracia, como o período das eleições, precisamos compreender a centralidade que o direito à vida deve ter para o Estado brasileiro e fortalecer construções que sejam capazes de estancar a epidemia de mortes causadas pelas forças de segurança. A defesa do direito à vida não deveria ser uma bandeira de esquerda ou de direita, mas uma pauta urgente, única capaz de sustentar qualquer projeto de democracia. Enquanto os ilegalismos pautarem as estratégias de segurança, a democracia estará em risco. Todes nós somos vítimas desta “guerra” operada pelo Estado.

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WikiFavelas: A memória construída a partir das casas

Por Mauro Amoroso (professor associado da FEBF/UERJ e presidente da ANPUH-RJ), com participação de Juliana de Abreu, Paula Noronha, Juliana da Silva, Nathalia Knopp e André Amorim (FEBF/UERJ). Publicado 08 de setembro de 2022.


Dicionário de Favelas Marielle Franco apresenta projeto de história oral de uma comunidade da Baixada Fluminense. Pesquisadores registram como foi a construção e convivência nas moradias, recompondo a memória coletiva do lugar.

No último dia 29 de agosto de 2022, a Lei Federal n.º 12.711 de 2012, mais conhecida como a Lei de Cotas para o ensino superior, completou dez anos. Muito antes disso, no ano 2000, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi pioneira na reserva de 50% de suas vagas para estudantes da rede pública municipal, seguida da destinação de 40% de suas vagas para estudantes autodeclarados negros já a partir de 2001. Se o acesso à universidade pública se democratizou no Brasil das últimas décadas, a UERJ é parte fundamental dessa história. E não apenas do ponto de vista de sua composição: desde 1988 a Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF/UERJ), Unidade Acadêmica da UERJ na região, dá concretude aos esforços de interiorização do ensino superior no estado, agregando valor, cultura e simbolismo a uma das regiões mais periféricas do país. Sim, favela tem memória. A universidade também. E é em reconhecimento a essa potente união que a Wikifavelas abraçou o desafio de registrar e disponibilizar ao público, de forma integral, as entrevistas de um importante projeto sobre moradia e memória, desenvolvido pela FEBF/UERJ, na favela de Vila Operária, em Duque de Caxias, sob a liderança do professor e presidente da seção Rio de Janeiro da Associação Nacional de História, Mauro Amoroso (FEBF/UERJ). Com a palavra, o prof. Mauro:

“Existem diferentes formas de narrar o passado, sendo a História, aquela feita sobre bases científicas e não-negacionistas, uma delas. Uma outra seria a memória. Ao longo do tempo, diferentes pensadores têm refletido sobre o que é, como se dá e quais os significados do lembrar. Ele pode ser visto como uma faculdade inerente a qualquer pessoa, como escreveu o antropólogo francês Joël Candau. Mas os indivíduos não são seres que vivem de forma isolada, muito pelo contrário: eles constroem suas perspectivas, formulam e reformulam seus interesses e identidades a partir de interações sociais. Ou seja, a memória é um processo que ocorre dentro de um grupo e possui elementos que são compartilhados pelos seus membros, resultando em uma memória coletiva – conforme uma longa tradição de estudos inauguradas pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs. E isso não ocorre de forma simples. O convívio em sociedade constantemente envolve conflitos e choques de diferentes interesses. Como não podia deixar de ser, isso afeta essas lembranças socialmente compartilhadas. Um tipo de manifestação desse impacto pode se dar através do apagamento e do esquecimento. Um exemplo, os livros didáticos são uma importante forma de construir uma memória coletivamente compartilhada, mas quantas vezes as favelas do Rio de Janeiro figuraram em suas páginas? Pois é, esse é um dos vetores que explicam como as favelas estão ausentes de uma memória oficial, mesmo em se tratando de uma cidade repleta delas.

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WikiFavelas: A quebrada e sua galáxia midiática

Por Pablo Nunes, publicado 03de novembro de 2022.

No Dicionário Marielle Franco, a importância das mídias comunitárias como forma de difundir o orgulho periférico e rebater a criminalização — como no caso do boné CPX de Lula. No Facebook, páginas e comentários se tornam os novos jornais de bairro.

Um simples boné com uma sigla que faz referência à palavra complexo, forma como o conjunto de favelas do Alemão é conhecido, virou arma de Bolsonaro contra Lula na disputa eleitoral deste ano. Como explicou em sua rede social a jornalista, doutoranda em comunicação e comunicadora popular, Gizelle Martins: “O termo ‘complexo’ foi inventado pela secretaria de segurança pública no final dos anos 1990 para 2000. Foi feito para estigmatizar a favela. No Alemão, os moradores ressignificaram o termo para a identificação da própria favela. Na Maré, a gente afirma que é Conjunto de Favelas. E está tudo bem! Houve uma ressignificação por parte dos moradores”.

Toda polêmica em torno do boné começou com a visita de Lula ao Complexo no dia 12 de outubro. Essa atividade foi articulada pelo ativista, líder comunitário e comunicador popular Rene Silva, em conjunto com outros mobilizadores de favelas. Antes da caminhada pela Estrada do Itararé, Lula se reuniu com o projeto Voz das Comunidades e ganhou o boné CPX das mãos de Camila Moradia, ativista e fundadora do Mulheres em Ação do Alemão. Logo depois, imagens do presidente com o acessório começaram a viralizar nas redes sociais e foram usadas por apoiadores do Presidente Jair Bolsonaro para divulgar desinformação. Como explica a jornalista e comunicadora popular Tatiana Lima: “​​na construção das fake news, a extrema direita tentou emplacar a teoria de que CPX, ao invés de complexo, representaria o termo cupinxa, que significa, na grafia correta da palavra, com ch (cupincha), ‘um indivíduo com quem se tem amizade, companheirismo, um camarada’, e que o boné representava uma ligação entre Lula, os moradores do Complexo do Alemão e o tráfico de drogas. Trata-se de uma prática de criminalização dos trabalhadores, da pobreza, de cunho racista — uma vez que majoritariamente a população das favelas é negra — conforme criticou a jornalista da GloboNews, Flávia Oliveira”.

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WikiFavelas: A difícil tarefa de aquilombar a política

Por Dicionário de Favelas Marielle Franco

Em abril de 2022, durante a pré campanha presidencial de Lula, uma foto chamou atenção na internet: 17 pessoas reunidas para decidir sobre a chapa presidencial, todas brancas e apenas duas mulheres. Mesmo que os governos anteriores do PT, de Lula e Dilma Rousseff, tenham sido os que mais incluíram mulheres e negros, foi inevitável refletir sobre como a fotografia do poder no Brasil, ainda que no campo progressista, democrático e popular, precisa mudar de forma mais significativa. Por sua vez, a foto da posse do presidente Gustavo Petro na Colômbia expressa a mudança desejada em toda América Latina, ao incluir os povos originários e firmar compromisso com a pauta racial. Em uma sociedade marcadamente elitista, Francia Marquez, mulher negra e mãe solo, passou a ocupar o lugar de vice-presidenta e ministra das relações interiores.

Nas eleições brasileiras de 2022 a Coalizão Negra Por Direitos lançou a campanha “Quilombo nos parlamentos”, trazendo a referência dos antepassados que resistiram à escravidão e se auto-organizaram em Quilombos. Aquilombar a política é a proposta de ampliar a participação negra tanto no Congresso Federal como nas Assembleias Legislativas nos estados. Segundo Sheila de Carvalho, integrante da Coalizão Negra, “construir uma democracia de fato exige equidade racial, justiça social e respeito aos direitos humanos. Como diz o lema da Coalizão Negra: enquanto houver racismo, não haverá democracia”. Já Vilma Reis, intelectual negra e militante dos direitos humanos na Bahia, também integrante da Coalizão Negra, sinaliza que “essa ação é histórica: 40 anos depois da primeira eleição de Benedita da Silva, a Coalizão Negra por Direitos entra na cena política para dizer que tudo que a gente falou lá é possível. Já em 1986, lutamos para eleger constituintes negros como Carlos Alberto Caó de Oliveira, que incluiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível na Constituição de 1988. Estamos agora em uma reviravolta na política. […] Nós resolvemos pautar isso de forma estrutural e estruturante e assim, ‘aquilombar’ a política”.

Com muitas lutas em todo o país, o cenário ainda é complexo: apenas 94 das 513 cadeiras de deputadas federais eleitas em 2022 são ocupadas por mulheres (18% do total), sendo apenas nove mulheres negras: Áurea Carolina (Psol-MG); Daiana Santos (PCdoB-RS); Denise Pessôa (PT-RS); Carol Dartora (PT-PR); Erika Hilton (PSOL-SP); Benedita da Silva (PT-RJ); Dandara (PT-MG); Taliria Petrone (PSOL-RJ); Jack Rocha (PT-ES) e Marina Silva (REDE – SP – SP). Já entre os 27 governadores eleitos, há nove autodeclarados negros: ​​Paulo Dantas (MDB-AL); Wilson Lima (União Brasil-AM); Coronel Marcos Rocha (União Brasil-RO); Ibaneis Rocha (MDB-DF); Gladson Cameli (PP-AC); Clécio Luis (Solidariedade-AP); Elmano de Freitas (PT-CE); Fátima Bezerra (PT-RN); Wanderlei Barbosa (Republicanos-TO). Cabe destacar que Ibaneis, Gladson e Clécio se autodeclararam como brancos nas últimas eleições e mudaram sua autodeclaração apenas em 2022.

Para piorar, em 2022, os partidos que mais elegeram candidatos autodeclarados negros — que se identificam como pardos ou pretos — para a Câmara dos Deputados são de direita. Fato esse que pode ser explicado pela mudança da regra (Emenda Constitucional 111) relativa à distribuição para os partidos de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), que passaram a ter valor majorado pela eleição de parlamentares mulheres e negros a partir da eleição de 2022. Portanto, trata-se de uma nova frente de batalha, capaz de conjugar a luta racial com um projeto emancipatório no Parlamento.

No entanto, não se trata apenas de eleger parlamentares comprometidos com os direitos humanos e sociais das populações negras e periféricas, mas de criar condições de transformação das formas de exercício do poder cristalizadas nesta arena política. Os relatos daquelas que ocupam o parlamento sendo mulheres, negras, pobres, de favelas e periferias são assustadores. Em 2019, dois casos: tanto a deputada Monica Francisco (PSOL/RJ) como a deputada Dani Monteiro (PSOL/RJ) foram barradas ao tentar usar um elevador privativo para deputadas na ALERJ, Monica enquanto ia para a posse de um desembargador e Dani durante sua rotina de trabalho na casa. Logo depois, Dani também teve suas roupas criticadas por outro colega, também deputado. Por que nossas deputadas negras e faveladas não são vistas como deputadas quando começam a habitar as casas legislativas? O que há em comum entre elas? São duas deputadas negras e faveladas, corpos, vestimentas, cabelos e estética muito diferentes dos homens brancos de ternos pretos que habitaram sempre essa casa.

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WikiFavelas: um caminho para reconstruir o Brasil

Introdução: Clara Polycarpo, Caíque Azael

Verbete: Caíque Azael, Rosa Pedro e Pedro Paulo Bicalho

Encerramos a coluna do Dicionário de Favelas Marielle Franco no Outras Palavras em 2022 com esperança. O nosso texto falava sobre as dificuldades de aquilombar a política no Brasil, num cenário de sub-representação de pessoas negras, pobres e faveladas nos espaços da política institucional. Mas, apesar de enormes dificuldades, o primeiro domingo do ano nos abriu oportunidades: o povo brasileiro subiu a rampa do Palácio do Planalto em toda a sua diversidade. Teremos indígenas, mulheres negras, faveladas, pessoas com deficiência, trabalhadores e trabalhadoras, sem-teto, sem-terra e tantos outros setores estratégicos na refundação do Brasil.

Os ares que sopram nos abrem caminhos para uma discussão profunda, aliada aos importantes movimentos sociais insurgentes, sobre democracia e direitos humanos no Brasil. Silvio Almeida, nomeado ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, ao tomar posse reforça o reconhecimento e a dignidade que deverá ser a principal ação do atual governo para a garantia de direitos de tantos corpos marcados pela discriminação e pela exclusão na sociedade brasileira. Por mais que muitos e muitas tentem vilipendiar o sentido dos direitos humanos e limitar o acesso à dignidade, a cada dia fica comprovado que sem um sistema de garantia de direitos fundamentais para todas as pessoas, não conseguiremos avançar como sociedade. Num período histórico de intensa polarização, que, como vimos, não se esgotou com o fim das eleições presidenciais de 2022, tem-se disputado também o sentido dos direitos humanos. E precisamos utilizar desse espaço para posicionar os setores progressistas e de esquerda na consolidação dos direitos. Sem anistia! – é o clamor da sociedade!

O segundo domingo do ano nos deu muitos recados. Diante de ameaças (falidas) de golpe de Estado, uma malta fascista tomou a Praça dos Três Poderes, em Brasília, para destruí-la. Flávio Dino, Ministro de Justiça e Segurança Pública, buscou nas forças de segurança formas de conter os terroristas, porém as polícias, sob o comando do governador do Distrito Federal, cooperaram na invasão e se mantiveram dispostas a servir de base para o que há de pior no Brasil: o racismo e as violações de direitos humanos. Em seu histórico de violências em todo território nacional, percebemos que o Estado é forte quando impõe seu braço armado contra populações pobres e negras, por exemplo, na promoção constante e institucionalizada de chacinas policiais em favelas e periferias do Rio de Janeiro. A identificação de “bandido”, portanto, não reconhece homens brancos de meia idade vestidos com o uniforme da CBF quebrando vidraças e destruindo obras de arte. Caso o comando seja identificar criminosos que atentem contra a democracia, os policiais não sabem para quem olhar, já que terão que olhar também para si mesmos.

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WikiFavelas: Pode a Baixada falar da violência?

Introdução: Clara Polycarpo, Caíque Azael e Palloma Menezes

Verbete: Douglas Almeida

Às vésperas de comemorar seu aniversário de 10 anos, Rafaelly da Rocha Vieira, uma menina negra moradora da Baixada Fluminense, foi morta por uma bala perdida no dia 25 de janeiro. Ela brincava com outras crianças perto de uma das vias mais movimentadas de São João de Meriti, por volta das 19h30, quando homens encapuzados invadiram a rua e começaram a disparar atingindo Rafaelly na altura do tórax. A menina teve a caixa torácica destruída por um tiro de fuzil que ninguém sabe quem disparou. Vizinhos contam que não sabem “quem foram os autores dos disparos nem para quem tinha sido”, só sabem que eles entraram na rua “atirando a esmo”.

O trágico episódio ocorrido na última semana insere-se em um contexto de violência que marca a vida de uma grande maior parte dos moradores da Baixada Fluminense. Infelizmente, tem crescido na Baixada não só o homicídio de jovens, mas também de crianças. Elza Menezes, madrinha de Rafaelly, faz um alerta: temos que parar de normalizar crianças sendo executadas. Segundo dados do Rio de Paz, divulgados em postagem do Fórum Grita Baixada em redes sociais, em um ano, de janeiro de 2022 a janeiro de 2023, além de Rafaelly, outras crianças foram baleadas no estado do Rio de Janeiro. Destacamos Kevin Lucas dos Santos Silva, de 6 anos, que foi morto por bala perdida em 6 de janeiro de 2022, em Queimados, na também Baixada Fluminense. Ele ajudava vizinhos numa mudança. Segundo testemunhas, PMs entraram atirando na comunidade. Outras duas ficaram feridas, uma delas em estado grave. Da mesma forma, há Juan Davi de Souza Faria, de 11 anos, foi morto em 1 de janeiro de 2023, nos primeiros minutos do ano, enquanto assistia aos fogos da virada do ano em sua casa na Chatuba, em Mesquita.

Os casos das crianças mortas de forma brutal no estado do Rio de Janeiro, em especial na região da Baixada Fluminense, no último ano se somam a tantos outros episódios de jovens negros, pobres e moradores de favelas e periferias que são capturados pelas redes de militarização nas favelas do Rio de Janeiro. Na pesquisa de dissertação intitulada Redes de Militarização no Rio de Janeiro: cartografias sobre juventudes, violências e resistências em favelas, Caíque Azael identifica que, durante a avaliação das cenas de jovens executados no estado do Rio de Janeiro, podemos concluir ao menos duas coisas: há um certo padrão racial (a maioria absoluta das pessoas executadas são negras) e também um padrão social/territorial (jovens pobres e moradores de favelas e periferias são praticamente o único perfil que comparece no painel dos jovens executados no estado). Na pesquisa, discute-se também o caso de Emily e Rebecca, também crianças negras da Baixada Fluminense executadas – estas em função da política pública de segurança do estado do Rio de Janeiro. Isso também diz muito sobre uma realidade de necropolítica e racismo que é constituinte das possibilidades de existir em territórios de favelas e periferias pelo Brasil.

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WikiFavelas: Exu e resistências no Sambódromo

Introdução: Caique Azael, Palloma Menezes e Sonia Fleury

Verbete: Faustino Teixeira.

Fevereiro é um mês intenso para aqueles e aquelas que curtem carnaval. Uma das maiores festas populares do mundo, o carnaval é uma expressão cultural diversa e vibrante. Um breve olhar aos enredos de 2023 das escolas de samba do Grupo Especial no Rio de Janeiro revela uma dimensão dessa festa: homenagens aos que vieram antes (Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho…), celebrações às religiões de matrizes africanas (com homenagens aos santos e orixás), questões de gênero e questões sociais em geral. A receita não é nova: a história do carnaval é uma história de lutas e resistência. Cada vez mais tem se fortalecido como crítica social e política. No carnaval de 2022 no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo, a Escola Rosa de Ouro encenou a transformação de Bolsonaro em jacaré, após tomar a vacina contra a covid-19. Já a Gaviões da Fiel apresentou um samba com uma crítica política direta ao governo, cantando: "Meu lugar de fala, a voz destemida / Cabeça erguida por nosso direitos / Quando o fascismo do asfalto / É opressor à militância por respeito".

Ao se perguntar como é possível um carnaval igualitário numa sociedade hierarquizada e autoritária, Roberto DaMatta encontra no princípio da inversão a explicação de como o carnaval suspende temporariamente as classificações e marcações sociais existentes, subvertendo as linhas de poder, em uma experiência controlada que irmana os fracos com seus poderes mágicos e místicos. Fugiram, assim, do poder fundado na força física e no monopólio da violência.

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WikiFavelas: Evoé, Santa Rosa Egipcíaca

Introdução: Sonia Fleury

Verbete: Carolina Rocha

O Dicionário de Favelas Marielle Franco homenageia toda as mulheres neste 8 de Março, com um tributo especial às mulheres negras, que nas favelas e periferias, se unem solidariamente para sobreviver, descortinar um futuro melhor para seus filhos e, assim, reconstruir, cotidianamente, o Brasil que os poderosos teimam em pilhar e destruir, desde a senzala até a favela.

As mulheres negras são as maiores vítimas do feminicídio, têm suas famílias destruídas pela violência estatal, pelo desemprego dos pais e pela falta de perspectivas de mobilidade social para os jovens. Foram as mais afetadas pela pandemia da covid-19, pois foram demitidas por suas patroas, tiveram que manter as crianças em casa sem escola e sem assistência, perderam renda familiar com a interrupção do trabalho informal, tiveram que cuidar dos doentes e enterrar seus mortos.

A maioria está situada no limiar da sobrevivência, sendo o maior contingente da população com os piores salários e que menos recebe benefícios previdenciários e, cuja expectativa de alcançar a aposentadoria se tornou cada vez mais distante com a reforma previdenciária que aumentou o tempo de contribuição e reduziu o valor dos benefícios. As mulheres negras não são protegidas por políticas públicas que reduza a carga de trabalho não remunerado, seja por meio do cuidado como direito previdenciário, seja com escolas de tempo integral, políticas de saúde e de assistência aos idosos com acesso efetivo.

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Marielle vive! O Wikifavelas celebra sua presença

Introdução: Equipe

Em março, se completarão 5 anos sem Marielle Franco. Meia década e ainda seguimos sem esclarecer o crime que assassinou Marielle e Anderson. O legado de Marielle inspira luta por justiça, memória e reparação. Em um cenário de disputas pela garantia dos direitos de cidadania, as favelas e periferias podem e devem contribuir para a reconstrução de um país mais justo e mais inclusivo. É com esta proposta que o Dicionário de Favelas Marielle Franco promoverá o evento “MARIELLE VIVE! Favelas na Reconstrução do País”, em 13 de março de 2023, na Biblioteca de Manguinhos, buscando refletir e repercutir o legado político coletivo de Marielle Franco. Conheça o projeto e saiba mais sobre a programação do evento:

O Dicionário de Favelas Marielle Franco tem se dedicado, desde o seu lançamento, em 2019, a impulsionar ações de preservação de memórias em favelas e periferias do Brasil, como parte do nosso compromisso com a expansão da cidadania e do direito à cidade. O projeto, sediado no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT-Fiocruz), baseia-se na criação coletiva de um espaço virtual capaz de reunir e divulgar os conhecimentos sobre estes territórios de forma interdisciplinar, interinstitucional e plural. Já são mais de 600 colaboradores cadastrados e 1.500 verbetes compartilhados na plataforma, abarcando os mais variados temas, como: cultura, sociabilidade, segurança, saúde, habitação, mídia, comunicação, juventude, relações étnico-raciais, violência, entre outros, além de uma área especial para acompanhamento dos efeitos da pandemia do novo coronavírus nas favelas e periferias do Brasil. Todos os conteúdos incluídos na plataforma do Dicionário de Favelas são chamados verbetes, quaisquer que sejam eles. Temos diferentes tipos de verbetes: textos, poemas, imagens, vídeos, filmes etc., desenvolvidos por usuários cadastrados que podem ser produzidos de maneira colaborativa.

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WikiFavelas: Oito vezes Marielle

Introdução: Clara Polycarpo e Palloma Menezes

“Eles combinaram de nos matar. E nós combinamos de não morrer.” Conceição Evaristo já nos ensina que, para romper com a política de morte, devemos forjar tecnologias insurgentes que partam da luta coletiva. E é também assim, reverenciando Conceição, que Anielle Franco, atual ministra da Igualdade Racial, inicia o seu depoimento “Ninguém solta a mão de ninguém”. Nesses cinco anos desde seu assassinato, Marielle Franco se faz presente como símbolo e como referência na luta pelos direitos de cidadania de todos, todas e todes, mulheres, negres, favelades, LGBQIAP+, quilombolas, indígenas e juventudes que acreditam, em especial, na luta pelo direito de se ter direitos. Como aguerrida defensora de direitos humanos, Marielle foi forjada na ancestralidade feminina que se mantém viva nas favelas e periferias do Brasil. Para os(as) moradores(as) de favela, a luta por direitos humanos é uma luta fundamental, porque se trata da luta pela própria sobrevivência. Por sua força e por sua garra, Marielle levou a voz de milhares de tantas outras do passado e do futuro para o palco da tribuna, exigindo ser ouvida. E assim ecoou.

Após a sua morte, a cidade já não é mais a mesma. A política já não é mais a mesma. Quem mandou matar Marielle Franco? Marielle inscreveu a favela como central na luta por cidadania e justiça. Quem mandou matar Marielle e tirou de nós a sua presença física, terá agora que lidar com a força coletiva que brota e traz para o centro da disputa a reconstrução de um país pela mão das mulheres negras. Como reforça Deley de Acari, poeta, animador cultural, militante de direitos humanos e afrocomunista, “A Marielle Presente será a Marielle Futura. Que depois que a justiça seja feita, há que cuidar que Marielle nunca se desvaneça e suma na fumaça, na névoa do esquecimento de cada um de nós e toda a gente. Há que cuidar que Marielle Futura terá sempre a Marielle Passada, Presente, perenemente. Há que cuidar que a Marielle Futura esteja sempre presente e que a Marielle nunca seja passada na vida da gente. Que Marielle sempre seja presente, para sempre.” A Marielle Presente é também a Marielle Futura. É também o nosso futuro possível, construído a muitas mãos.

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WikiFavelas: Genealogias do funk carioca

Por Norma Miranda. Publicado em 29 de março de 2023.

Os vibrantes “bailes de corredor” dos anos 90 ressurgiram e canalizam a voz das favelas. Texto mostra: mais que festa, são espaço de promoção de lazer e solidariedade das comunidades.

A última semana foi marcada por inúmeras homenagens que celebraram os legados e as bandeiras de Marielle Franco. Ao longo da vida, Marielle lutou pela defesa dos direitos humanos e pelo direito à vida nas favelas, apresentou formulações de projetos de leis em defesa dos direitos da população LGBTI e das mulheres pretas e faveladas, além de ter defendido ativamente as políticas de esporte, cultura e lazer em uma perspectiva popular e favelada.

Na esfera cultural, Marielle tinha uma relação forte com o funk que marcava sua trajetória e militância. Ela viveu o período no qual as favelas se divertiam e se dividiam entre o lado A e o lado B nos famosos bailes de corredor. Durante o auge das equipes de som que formavam paredes inteiras com alto-falantes poderosos, como conta Luyara Franco, sua mãe Marielle foi “garota furacão 2000”. Anos depois mãe e filha fizeram juntas parte do bloco da Apafunk. Como sintetiza Luyara: “na contramão de uma sociedade que deprecia o funk, considerando como subcultura uma arte que contextualiza a dura realidade das favelas, vi minha mãe, Marielle Franco, construindo sua trajetória política sem jamais abrir mão de reivindicar o seu lugar como moradora da favela e orgulhosamente ‘cria do funk’”.

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WikiFavelas: As engrenagens do trabalho escravo

Por Vitor Martins e Clara Polycarpo. Publicado em 26 de abril de 2023.

Ele está ligado com a formação econômica do país, mostra o Dicionário Marielle Franco. Mas isso não explica tudo. É preciso compreender como corpos negros tornam-se descartáveis diante do agronegócio e da precarização selvagem.

A proximidade da celebração do 1º de Maio nos leva a refletir sobre a difícil situação do trabalho no país, que conjuga desregulamentação e perda de direitos laborais e previdenciários com a persistência do trabalho escravo e a naturalização da empregabilidade precária. É imprescindível ter em conta que o combate ao trabalho escravo, que recentemente voltou a ser tematizado, não pode ser dissociado das demais dimensões da regulação e proteção ao trabalho, atuando de forma sinérgica, como acima apontado.

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WikiFavelas: Os jovens que chacoalham as periferias

Por Dicionário de Favelas Marielle Franco. Publicado em 12 de abril de 2023.

A potência das juventudes ganha ruas, redes e visibilidade, em diferentes tempos históricos, impulsionando reivindicações em todo o mundo. Em suas mobilizações, comumente, há combustível para a transformação social.

Em 2023, na França, vemos milhares de jovens se juntando às lutas contra a Reforma da Previdência, que está em debate, bradando ocuparem as ruas “pela honra dos trabalhadores e por um mundo melhor”. Nas lutas em defesa da justiça climática, há potentes nomes como a sueca Greta Thunberg, de 19 anos, ou a ugandense Vanessa Nakate, de 26 anos. Nos Estado Unidos, Amanda Gorman é uma das fortes vozes da juventude negra que disputa a cena política para discutir gênero, raça e diáspora.

No Brasil, milhares de jovens, em sua diversidade, ocupam espaços políticos como ruas, redes sociais, escolas, universidades e aldeias, no meio urbano ou rural, para disputar os rumos da sociedade. Para citar exemplos recentes, lembremos das lutas indígenas, com expoentes como Txai Suruí, líder do povo Suruí e coordenadora do Movimento da Juventude Indígena, que fez um brilhante discurso na última assembleia da ONU em 2022, em defesa das florestas. Nas lutas das favelas, há outros grandes exemplos de potências que têm indicado o caminho da luta como possibilidade de conquistar outros horizontes de vida, com dignidade para todas as pessoas. Nos últimos meses, também acompanhamos o papel de grandes lideranças, como René Silva, comunicador do Complexo do Alemão, no fortalecimento da campanha eleitoral ao lado do então candidato Luís Inácio Lula da Silva, nas favelas do Rio de Janeiro, não apenas disputando votos para o presidente em seu território, mas mobilizando suas redes e canais de comunicação para combater fake news que reforçam o estereótipo histórico de criminalização dos moradores de favelas.

As lutas dos jovens favelados também passam pelo debate climático, quando vemos ativistas como Marcelle Decothé defender que não se deve debater mudança climática sem discutir gênero, raça e território – já que as mulheres negras são as mais afetadas pelas mudanças. Nas lutas pela vida dos jovens negros, vemos uma grande convergência. Thux Nascimento, cria da baixada fluminense e estudante de direito na UFRJ, nos lembra todos os dias que não é uma fantasia defender que as máquinas da morte fiquem longe das favelas, especialmente para preservar a vida da juventude negra que vem sendo exterminada todos os dias pelas mãos do estado.

Hoje, a coluna do Dicionário de Favelas Marielle Franco discute, uma vez mais, o tema “Ser Jovem Hoje”, que permite enfoques ricos e diversos, a partir de um programa de televisão produzido por jovens de periferias e favelas do estado do Rio de Janeiro. O Programa Papo na Laje se apresenta como um programa televisivo interessado nas múltiplas experiências de protagonismo das juventudes de favelas e periferias do estado. Já finalizou a sua segunda temporada e prepara o seu retorno, às quintas feiras, às 18h, no canal da TV Comunitária do Rio de Janeiro (TVCRio) e no YouTube. A escuta dos pares, além das próprias experiências de participação política e organizativa, valorizando o trabalho de base, impulsionaram a criação/ocupação desse novo espaço de discussão, que usa e disputa ferramentas contemporâneas indispensáveis de comunicação na esfera pública.

Há alguns anos, ao pensar no movimento de juventudes, muitos de nós pensaríamos apenas no movimento estudantil, organizado em escolas e universidades. É fundamental alargar tal concepção, a partir da compreensão de que jovens brasileiros – considerando mais especificamente a ótica daqueles que vivem em situação de pobreza – estão implicados em mudar o mundo na sua complexidade, como vemos nos poucos exemplos citados acima. Assim, organizam-se para defender seus direitos, seja no campo da educação – tanto por meio do tradicional e fundamental movimento estudantil, mas também com a criação de ferramentas de educação popular, na construção de mobilizações na cultura e no direito à cidade – seja por meio da pesquisa e comunicação comunitária e tantos outros lugares e instrumentos de luta – pautando temas interseccionais na construção dos direitos de cidadania. Aqui fazemos uma menção honrosa às rodas culturais em favelas e periferias que insistem em se organizar para apresentar aos jovens perspectivas de mundo a partir da cultura, num bravo ato de invenção de mundos possíveis, produzindo saúde e potência em contextos de vulnerabilização.

Na disputa pelo direito à cidade, as pessoas de favelas circulam e inventam mobilizações de afirmação de que não há lugar no mundo que não possa ser seu. Os rolezinhos foram uma expressão da luta política. Aliás, a luta política em diversos momentos também ocupa a política institucional. Daí podemos observar a qualidade da ocupação dos(as) jovens no parlamento. Especialmente quando falamos de jovens de favelas, podemos observar a preocupação em produzir políticas públicas voltadas aos seus: um caso é o da deputada estadual Dani Monteiro (PSOL/RJ), eleita pela primeira vez para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aos 26 anos. A jovem negra cria do Morro do São Carlos presidiu uma Comissão Especial da Juventude, importante ferramenta legislativa para mapear a situação de vida da juventude do estado e propor políticas públicas para promoção de emprego e renda; acesso à formação; redução de violências; acesso à cultura e saúde.

Na primeira discussão sobre o tema “Ser Jovem Hoje”, em outubro de 2022, os participantes enfatizaram o sentido de pertencimento ao território que o conceito de “cria” da favela retrata. É um conceito nucleador e mediador, que dá sentido aos sentimentos coletivamente compartilhados. São aqueles que falam e entendem a sua língua, de pessoas que não aprenderam a “falar bonito e nem a ouvir bonito”. A língua aparece como parte do processo de dominação na escola tradicional e como possibilidade de comunicação e aprendizagem quando os professores populares falam como os jovens das favelas. Já a militância política é vista como uma explosão da consciência – uma retirada da venda dos olhos – e também como articulação e novas relações com outros militantes dos movimentos sociais e estudantil. A ação coletiva surge da necessidade diante da ausência das políticas públicas e da necessidade de enfrentar os problemas cotidianos, mas, fundamentalmente, da solidariedade, da organização e da responsabilidade diante das situações que os afligem, como ficou demonstrado no combate à pandemia. Como todo jovem, sonham com a transformação da realidade em que vivem, mas o sonhar só ganha sentido quando é compartilhado, fabulando juntos o futuro.

O episódio 2 do Programa Papo na Laje foi gravado na favela Cerro Corá, em Laranjeiras, e deu continuidade ao tema do primeiro episódio “Ser Jovem Hoje”. Os convidados foram Magda Gomes e Gelson Henrique, jovens pretos, articuladores de movimentos políticos ligados a mulheres e juventudes, entrevistados por Juliana França. Nesta segunda discussão sobre o tema, a necessidade de ocupação dos “espaços políticos” ganha grande relevância, especialmente a partir do recorte racial que atravessa todos os outros assuntos da conversa, atrelados às vivências dos entrevistados, autoidentificados como parte das “novas gerações” que compartilham visões de mundo a partir da cultura afrodescendente. O elemento comum da negritude é mencionado como elo de conexão com redes de afetos, mas também é agregador do sofrimento de violências que continuam a marcar suas gerações.

Já não é mais novidade que, ano após ano, o padrão da violência letal, por exemplo, se mantenha ou aumente no país: divulgada pelo IBGE, a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil” constatou que, em 2020, pessoas pardas na faixa etária de 15 a 29 anos apresentaram taxa de 34,1 mortes por 100 mil habitantes e as de cor ou raça preta, de 21,9 mortes – o que representa quase o triplo e o dobro, respectivamente, da taxa entre as pessoas de cor ou raça branca (de 11,5 mortes por 100 mil habitantes).

Ainda entre os tópicos discutidos pelos jovens entrevistados, foram mencionadas questões relativas à forma de ocupação dos espaços; à construção de futuro, levando em conta a noção de uma “política do compartilhamento”, herdada de matrizes culturais de origem africana – tanto de um passado ancestral longínquo, quanto de matriarcas da família que carregam conhecimentos e repassam às crianças; à ancoragem do fazer político “o tempo todo e em todo o lugar” e à dimensão da educação nas favelas cariocas. Portanto, a incidência política é pensada a partir do conceito da proporcionalidade e não mais da representatividade; compartilhar diz respeito não só à prática da solidariedade, mas a acessar todos os direitos e lugares sociais em sua integralidade, não a partir de posições subalternas. Para isso, é preciso que a agência política – compreendendo-se como “sujeita/sujeito política” – aconteça em todos os lugares cotidianos, já que diz respeito a uma visão crítica, não colonial, da realidade. Por fim, é principalmente a partir do campo da educação que é preciso construir/reforçar o entendimento das favelas como fontes de conhecimentos que dialogam com as juventudes, em suas diversidades, do entendimento do seu protagonismo a respeito das histórias ali vividas, bem como da construção da história do país – reforçando a importância dos saberes não acadêmicos. Leia o verbete completo no Dicionário de Favelas Marielle Franco. As análises foram construídas por um grupo de estudos sobre análise de discurso sob a coordenação de Sonia Fleury.

Introdução: Caique Azael, Kita Pedroza e Clara Polycarpo

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Wikifavelas: A agroecologia que transforma favelas

Por Gabriel Nunes. Publicado 24 de maio de 2023.

Projetos de hortas comunitárias, reflorestamento e preservação ambiental avançam nas periferias, mostra o Dicionário Marielle Franco. Eles unem saberes populares e avanços técnicos – e mobilizam comunidades em torno do bem-estar coletivo.

No Brasil, a discussão sobre questões no campo da ecologia comparece a partir de diferentes atores. Na política institucional é cada vez mais comum encontrar a discussão de emergência climática, convocando a população a discutir e repensar suas práticas em função das mudanças climáticas provocadas pela intervenção humana no planeta. Um exemplo recente é o projeto de lei que tramitou na Câmara dos Vereadores da cidade do Rio de Janeiro, de autoria do vereador William Siri (PSOL-RJ) que reconhece o estado de Emergência Climática na cidade, situação que ameaça a vida humana e que requer um conjunto de esforços para transição energética, bem como implementação de políticas públicas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

Introdução: Gabriel Nunes

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WikiFavelas: Como as favelas pensam o racismo

Por Gracilene Firmino e Amanda Botelho. Publicado em 07 de junho de 2023.

Manifestações de racismo têm ocorrido, com frequência assustadora, em diversos cantos do mundo, evidenciando a presença inequívoca da discriminação que se perpetua e reproduz desde as situações menos evidentes do dia a dia até os gritos escancarados de torcidas que ecoam em grandes estádios de futebol. No Brasil, só nos dois primeiros meses de 2023, houve 1.433 violações registradas, mais do que o dobro de denúncias feitas no primeiro semestre de 2022.

Diante desse contexto, fica a interrogação: o aumento dos números de casos conhecidos de racismo seria um indicador positivo da existência de mecanismos mais eficazes de registro de casos antes não notificados ou, de fato, a conjuntura política nos últimos anos contribuiu para o encorajamento de práticas e comportamentos racistas? Se considerarmos estes números alarmantes, existe realmente um complicador: não há padronização nos registros de casos de discriminação racial no Brasil; cada estado trata o racismo de forma diferente e tem métodos próprios de registrar. A falta de normatização desses dados pode levar à subnotificação e, consequentemente, à dificuldade de estabelecer políticas públicas de combate aos crimes de racismo e injúria racial.

Mas, quando o assunto é o preconceito racial, a mesma situação de falta de regras de padronização dos registros não se verifica só no Brasil. No mundo dos esportes, em especial do futebol, cada país adota uma política diferente para lidar com o problema. Ou seja, o racismo atravessa fronteiras e as punições são escassas. Em tempos recentes, na Europa, a Liga Nacional de Futebol Profissional da Espanha (LaLiga) apresentou 13 denúncias, ainda sem nenhuma responsabilização (incluindo 9 relacionadas ao jogador Vinicius Junior). Na Inglaterra, onde houve 183 denúncias de racismo nos últimos dois anos, foi adotado o plano “No Room for Racism”, um sistema mais rígido de punições, incluindo multas milionárias. Na Alemanha, um clube (o Schalke) foi multado em 50 mil euros por cânticos racistas de sua torcida, na Copa da Alemanha em 2020, enquanto outros episódios ficaram sem punição. Na França, um torcedor foi sentenciado com prisão e afastamento dos estádios após fazer gesto nazista.

Para mencionar só alguns casos de discriminação racial em 2023 – dentro e fora dos esportes – que ganharam maior repercussão no Brasil ou relacionados a brasileiros no exterior, a lista já é extensa. No início de junho, alunos do ensino fundamental de um colégio particular no Rio de Janeiro, na Zona Norte, gravaram vídeo onde fazem ofensas racistas e homofóbicas contra dois professores. A direção suspendeu os estudantes e acionou o Conselho Tutelar. Em maio (dia 31), as influenciadoras Kérollen Cunha e Nancy Gonçalves (mãe e filha), passaram a ser investigadas por crimes de racismo ou injuria racial após compartilharem vídeo no TikTok, no qual aparecem entregando banana e macaco de pelúcia para crianças negras abordadas na rua. Ambas possuem cerca de 13 milhões de seguidores nessa rede social. Ainda em maio (dia 21), veículos da mídia brasileira e internacional noticiaram os xingamentos racistas sofridos pelo jogador brasileiro Vinícius Junior, do Real Madrid, em partida contra o Valencia, na Espanha; no jogo, além dos gritos da torcida, Vini Jr. também foi vítima de ações discriminatórias e omissas por parte da arbitragem e da Liga Nacional de Futebol Profissional da Espanha. Mas o caso só explodiu na imprensa após a repercussão do pronunciamento de autoridades brasileiras, incluindo o presidente da República Luís Inácio Lula da Silva. Até então, já havia nove denúncias de ataques racistas, fartamente documentadas contra o atleta, incluindo um episódio em que torcedores de um time rival simularam o enforcamento de um boneco com nome do jogador, fazendo alusão a “era dos linchamentos” contra a população negra, com ápice entre 1890 e 1930 nos Estados Unidos. Em abril, no domingo de Páscoa, a ex-jogadora de vôlei Sandra Mathias chicoteou, com a coleira do seu cachorro, o entregador Max Ângelo dos Santos e deu tapas na também entregadora Viviane Maria Souza – ambos negros – no bairro de São Conrado (RJ). Morador da Rocinha, Max relatou ter sido chamado de “preto da favela” e registrou o caso na delegacia como injúria. Sandra negou as agressões e o caso segue sendo investigado. Em fevereiro, duas moradoras de um prédio no Centro do Rio denunciaram racismo por parte de uma vizinha, que gritava insultos racistas diariamente e fazia ameaças de agressão física. Luana Rolim, estudante de medicina veterinária, e Etiene Martins, doutoranda em Comunicação, denunciaram o caso à síndica, que não tomou providências. O caso está sendo investigado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.

O debate teórico sobre racismo também ganhou novo capítulo recentemente, quando o intelectual negro e professor emérito da UFRJ Muniz Sodré concedeu entrevista à Ilustríssima, da Folha de São Paulo, na qual criticava o conceito de racismo estrutural, tornado conhecido por meio do livro Racismo estrutural, de autoria do ministro de Direitos Humanos Sílvio Almeida, também intelectual negro. Na ocasião, Sodré explicou o argumento que desenvolve em seu livro O fascismo da cor, segundo o qual o racismo no Brasil é institucional e intersubjetivo, mas não estrutural, por lhe faltar ordenação escrita em lei ou padronização em costumes publicamente reconhecidos. A crítica despertou inúmeras reações, que ressaltaram que o conceito de estrutura não se restringe ao Estado ou a organizações formalmente constituídas, podendo se expressar como um conjunto discursivo estável ou um sistema simbólico implícito.

No Brasil, país onde mais da metade da população se declara preta ou parda (56,1 % da população brasileira, segundo o IBGE/2022) e onde as favelas concentram uma proporção maior de negros do que a média brasileira (ou seja, 67%, de acordo com o Data Favela/2022)[1], importa, e muito, saber como a população residente nesses espaços percebe o racismo. Essa é a abordagem do verbete Racismo na favela: Como os Moradores Entendem o Preconceito Racial (artigo), escrito por Gracilene Firmino e Amanda Botelho, jornalistas, nascidas e criadas em favelas do Rio de Janeiro. Cientes de que “o racismo existe e está enraizado na sociedade, ancorado em falas, comportamentos, atitudes, sistemas e narrativas que excluem e matam pessoas negras”, elas foram movidas pelo interesse em conhecer melhor sobre o que pensam e sentem, em relação ao preconceito racial, seus vizinhos ou pessoas de outras favelas da cidade. Afinal, moradores das favelas cariocas já somam cerca de 2.144.000 habitantes (Censo IBGE/2010).

Na visão de entrevistados na Rocinha, Complexo do Alemão e Cidade de Deus, a percepção do racismo nas favelas abrange a concepção de racismo de cada um, além de como este preconceito se manifesta em relação às pessoas residentes – no que diz respeito a quem sofre e quem pratica a discriminação. Quanto ao que é racismo, há consenso sobre se tratar de uma forma discriminatória e desigual da alteridade pela “cor da pele”, para muitos associada a outros elementos como a classe social, o endereço e a religião; a maior parte concorda que está presente “em todos os lugares”, mas alguns acreditam que se apresente mais fortemente no Brasil. Mencionam também a percepção de envolver diferentes violências por meio de ações concretas e simbólicas, interligadas a um sistema de poder “estrutural (e estruturante), individual e institucional”.

Quando pensam em quem sofre e quem pratica o preconceito racial à sua volta, apontam sentimentos em comum e concordam em relação aos protagonistas da violência racial. Sobre os últimos, o Estado, por meio das forças policiais, é identificado como o principal ator da violência contra a população das favelas. Já quando o assunto é o racismo sentido na própria pele, ressaltam que o peso sentido nas favelas é maior, por conta da soma dos marcadores de raça e classe social (já que são “pretos e pobres”). Por exemplo, em um episódico citado, amigos brancos e negros foram parados em uma batida policial na Rocinha, mas apenas os pretos foram revistados. Além disso, surge nessas falas também o racismo enquanto elemento simbólico associado à representação dos territórios favelados, no imaginário social, como lugares habitados majoritariamente por criminosos. No caso do Rio de Janeiro, tais estereótipos têm sido alimentados por discursos do poder público e da imprensa desde o surgimento das favelas, no fim do século XIX, como demonstram diversos estudos históricos e científicos.

Portanto, as falas desses moradores levam a pensar na necessidade de compreender o racismo, do ponto de vista das favelas, a partir de uma perspectiva interseccional que combina diferentes fatores. Mas nem sempre há consciência por parte dos moradores desses espaços sobre todas essas opressões sofridas, conforme também destacam as autoras do artigo (e do verbete). A educação é apontada como dimensão importante neste contexto, por meio da qual práticas racistas podem ser identificadas, pensadas e combatidas.

A partir desta perspectiva, pode-se estabelecer um convite a um breve diálogo com o pensamento do sociólogo Florestan Fernandes, de modo a complementar o panorama de estudos (alguns aqui mencionados) mais recentes já oferecidos por autores e pesquisadores negras e negros no Brasil. Dedicada não só à compreensão do Brasil, no contexto do pensamento social brasileiro, mas aos estudos sobre a questão racial e à constituição do racismo em nosso país, bem como a subsídios às lutas contra a discriminação de negros e negras, os escritos de Florestan, principalmente do fim da década de 1980, podem contribuir para lutas antirracistas nas favelas. Não é demais lembrar que muito da trajetória biográfica do sociólogo corresponde ao seu comprometimento não apenas com as ciências sociais, mas com a educação, a luta dos de baixo e os negros, conforme lembra Ronaldo Tadeu de Souza. Portanto, há desdobramentos prático-políticos de sua interpretação sobre o problema racial brasileiro.

No que diz respeito a esse tema, Florestan se preocupa com a efetiva democratização da sociedade brasileira – e suas estruturas de organização – a partir do pós-escravidão. Mas suas pesquisas mostram exatamente os impedimentos à essa democratização. Assim, argumenta se tratar de uma sociedade que se orienta social, cultural, política e economicamente contra a democratização – portanto contra os negros. Diante desse fato, dois aspectos podem ser destacados: a necessidade da negação e, portanto, da tomada de consciência da inexistência da suposta democracia racial no Brasil, bem como da manutenção de todos os privilégios dos brancos daí decorrentes; e a aposta de que a mudança desse estado de coisas, só será possível por meio do protagonismo da população negra na luta radical pela transformação das relações de raça e classe em nossa sociedade. Para Florestan, é necessária “uma radicalidade revolucionária” (Significado do Protesto Negro, 1989), ao movimento negro para derrota do racismo e construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. Ou seja, nessa perspectiva, a efetivação da democracia no Brasil, em seus diversos sentidos, virá por meio das lutas em torno da questão racial.

Introdução: Kita Pedroza (Cristina Pedroza de Faria)

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O Censo 2022 e as favelas do Brasil

Por Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco Publicado em 10 de maio de 2023.

Wikifavelas explica: organizados de forma não-asséptica, os territórios periféricos penam para entrar no recenseamento. Os agentes do IBGE não os conhecem. As comunidades tentam auxiliá-los. Veja também quais as 20 maiores “quebradas” do país.

Quantas pessoas moram em favelas no Brasil? Qual estado possui as maiores favelas? Como são as realidades em cada território? Talvez, a gente esteja próximo de conseguir responder algumas perguntas sobre a realidade das favelas brasileiras com mais embasamento. Desde 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) está nas ruas coletando dados para a atualização do Censo, que devia ter sido realizado em 2020, mas, em função da pandemia de Covid-19 e do corte de verbas por parte do governo Bolsonaro, foi adiado. O Censo é um dos maiores e mais importantes esforços do Estado brasileiro para conhecer sua população na diversidade que a constitui e, a partir disso, produzir políticas públicas para a melhoria da qualidade de vida dos diferentes segmentos sociais.

Mas, o que isso tem a ver com as favelas no Brasil? E de que maneiras o Censo pode contribuir com a melhoria da qualidade de vida nestes territórios?

Primeiro é preciso ter em conta a definição de favelas pelo IBGE, como aglomerado subnormal1. “Aglomerado Subnormal é uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação”. Privilegia, pois, critérios negativos ligados à titularidade da propriedade, a irregularidade da ocupação, a irregularidade urbanística e a carência de serviços públicos. Em pesquisa realizada junto às prefeituras, a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic-IBGE), voltada para levantar informações relativas aos instrumentos de gestão municipal, mostra que as prefeituras, apesar de seguirem a caracterização adotada pelo instituto, adicionam outros critérios relativos às características ambientais, como localização em áreas de risco e sócio-econômicas e rendimento familiar. Estes critérios se aproximam da definição dada pela ONU Habitat para assentamentos informais, que destaca a falta de direito ou certificado de posse do terreno, áreas inadequadas do ponto de vista de um conjunto de riscos, precariedade em pelo menos um dos serviços públicos essenciais, precariedade dos materiais de construção e discordância dos códigos urbanísticos, número de moradores por Cômodo (COSTA e NASCIMENTO, 2005; CATALÁ e do CARMO, 20212).

O que se constata é que não há isenção nas definições, cada uma delas se insere em um contexto que destaca elementos comuns como a informalidade e a precariedade dos serviços, mas também dão ênfases distintas em relação à ocupação irregular, ao direito, ao risco, à qualidade da moradia. Tanto lideranças de favelas quanto estudiosos da área urbana questionam o privilégio dado a critérios como irregularidade da ocupação e inadequação aos padrões urbanísticos, tendo em conta que são exatamente estes critérios que colocam as favelas e suas populações no âmbito da informalidade e dos ilegalismos (ROLNIK, 20153). Destacam, por outro lado, o processo de criação de espaços urbanos por meio da autoconstrução que, na maior parte das vezes se faz coletivamente, por meio dos mutirões.

A discussão sobre critérios é fundamental, pois, são eles que orientam a coleta das informações e dados que vão ser a base para formulação de políticas públicas. Depois de atravessarmos um período crítico no qual foram cortados recursos orçamentários e postergada a realização do Censo, estamos em vias de finalizar a coleta dos dados censitários.

O Estado brasileiro assume como uma das tarefas prioritárias no novo ciclo democrático que se abre após a eleição de Lula o enfrentamento das graves desigualdades sociais e a construção de políticas públicas para a efetivação da dignidade humana. Um dos pontos centrais que mobiliza o governo desde a campanha eleitoral é a discussão sobre acesso à alimentação, educação, saúde, emprego e renda. Em todos estes casos, a intervenção política do pode se dar a partir da criação ou fomento a políticas públicas, como o Fome Zero, o Bolsa Família, o programa Mais Médicos e a melhoria e ampliação de creches e escolas. Mas nenhuma política pública nasce sem um conhecimento profundo dos grupos sociais que ela pretende atingir, ou estará fadada ao fracasso. O processo de elaboração de políticas públicas deve sempre partir de um qualificado diagnóstico da realidade concreta sobre a qual intervirá e, nesse sentido, o Censo é um esforço precioso, que não responde à totalidade das perguntas sobre a vida social, mas pode ajudar a formular as perguntas complementares corretas para instigar a ação de Estado. É olhando o Censo que podemos entender como está distribuída a escolarização formal pelo país, como a renda varia de acordo com aspectos de gênero, raça e território, como o saneamento básico está distribuído e tantas outras questões fundamentais.

Há uma engenharia complexa quando falamos da realização do Censo nas favelas. Uma primeira questão diz respeito ao processo histórico de formação destes territórios, que comumente não são vistos como regulares nos espaços das instituiçẽos. Suas ruas, praças, vielas, becos, ladeiras e esquinas não existem nos mapas oficiais. Se o trabalho dos recenseadores é de visitar domicílios reais, como visitar os locais que não existem (no sentido literal e no sentido figurado) para o poder público? O percurso dificultado dos recenseadores não os impede de buscar, batendo de porta em porta, as respostas. Mesmo assim, a arquitetura das favelas não é tão linear e não se organiza de forma seriada e asséptica como no asfalto. A mesma casa pode ter uma divisão com outra casa nos fundos e as lajes – que são espaços importantes na arquitetura das favelas – podem fazer germinar o lar dos filhos que casaram, uma kitnet para locação para fins de renda extra, um pequeno negócio… Um mesmo espaço pode compreender não só moradia, mas espaço de trabalho e sustento. É dar um nó na cabeça dos analistas. A falta de endereços oficiais dificulta muito o trabalho, que busca um universo estável e asséptico, mas não inviabiliza a realização do Censo, graças aos esforços dos recenseadores. Por essa razão, grupos de pesquisadores e moradores de favelas têm se dedicado à construção de cartografias, sistemas de georreferenciamento que permitem a construção de mapas das favelas, identificando pontos importantes para a população residente. Todos os esforços para trazer as favelas e periferias para os mapas das cidades são fundamentai9s para dar visibilidade às necessidades e demandas de suas populações, bem como para participar da partilha dos recursos públicos. No entanto, apenas o Censo cobre toda a população em território nacional e, sendo realizado periodicamente, permite comparações e a observação de mudanças e tendências.

Em 2023, diante da baixa coleta de dados nos territórios de favelas, diferentes estratégias têm sido adotadas pelo IBGE. Como a produção de dados sobre/nas/pelas favelas não é um esforço novo. Dois exemplos recentes são 1) a realização de um Censo entre moradores no conjunto de favelas da Maré, impulsionado pela ONG Redes da Maré, e 2) o mapeamento que aconteceu durante a pandemia, quando as favelas mais uma vez viabilizaram sua capacidade de produção de dados com a produção de Painéis Comunitários para mapear a incidência de covid-19 em seus territórios. A realidade é que há iniciativas locais e nacionais que podem contribuir com o enfrentamento desse desafio. Uma delas, no Rio de Janeiro, é a parceria entre IBGE e Instituto Pereira Passos, que comandou um projeto chamado “Territórios Sociais” e possui larga experiência em mapeamento e diálogo em favelas na cidade.

A segunda iniciativa, de caráter mais nacionalizado, é o projeto chamado “Favela no Mapa”, um esforço conjunto do governo federal, do Instituto Data Favela e da Central Única das Favelas (CUFA) para intensificar o trabalho de recenseadores nestas localidades. A meta do projeto é atingir 5 mil favelas distribuídas em 500 cidades pelo país. Segundo o IBGE, “a ideia é que líderes comunitários dessas localidades sirvam de guias e ajudem a sensibilizar os moradores quanto à importância do Censo Demográfico”. O projeto foi lançado em março de 2023, com a presença da ministra de Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, na favela de Heliópolis, em São Paulo, e tem abrangência nos estados da Bahia, Goiás, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina.

Outra questão que tem sido encontrada como um ponto de dificuldades é a desinformação. Uma das grandes armas do obscurantismo, com o seu exército propagador de notícias falsas, ela produz confusões, medo e insegurança nas favelas e periferias. Muitas pessoas olham para esse processo como uma ameaça aos eventuais recursos assistenciais que são recebidos (por exemplo, o desligamento do Bolsa Família).

Em 2023, a Pesquisa Data Favela revelou que há mais de 10 mil favelas espalhadas pelo Brasil. Se somadas, produziram o terceiro maior estado em número de habitantes, com movimentações financeiras de mais de 200 bilhões de reais (valor crescente em relação aos últimos anos). Os dados do Data Favela revelam que, nos últimos 10 anos, o número de favelas espalhadas pelo Brasil dobrou. Renato Meirelles, fundador do instituto e responsável pela pesquisa, compreende que “a favela é a expressão demográfica das desigualdades sociais” e explica a partir disso o crescimento tão significativo na última década: as condições de vida da população brasileira tem piorado, as reformas regressivas (como a Reforma Trabalhista, de Michel Temer) arrastam a população para o mercado informal de emprego ou para o desemprego, trazem de volta a fome para a vida de mais famílias e aumentam a procura por espaços de moradia em territórios de favelas.

É nesse cenário que precisamos produzir políticas públicas para a garantia da dignidade humana. O Censo 2022, cujas últimas ações de mapeamento acontecem até o dia 28 de maio em territórios indígenas, tem previsão de entregar à sociedade nos próximos meses um diagnóstico de como está o Brasil. Daqui para frente, as ações do governo e da sociedade civil ganham um novo ponto zero para suas intervenções.

O Dicionário de Favelas Marielle Franco está atento aos dados coletados pelo Censo 2022 e aberto para contribuir com a divulgação de conhecimentos e histórias das favelas e periferias do Brasil e do mundo. Parte desse esforço envolve o estímulo à criação de verbetes com dados sobre os territórios mapeados pelo IBGE. Nos verbetes, podemos encontrar não apenas os dados coletados pelo Estado, mas também histórias e memórias de moradores, ativistas, pesquisadores, imagens, vídeos, reportagens, mapas e uma série de outros conteúdos que nos ajudam a conhecer e preservar a memória de favelas no Brasil. Para saber quais são as 20 maiores favelas do Brasil, acesse o verbete disponível na íntegra no Dicionário de Favelas Marielle Franco clicando aqui.

Introdução: Caíque Azael

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As periferias na fúria de 2013

Por Arthur William Cardoso Santos

Pelas redes sociais, inúmeras pessoas estão publicando, durante este mês, suas lembranças, debates, contextualizações e análises sobre os dez anos da grande primeira manifestação intitulada como “Jornadas de Junho de 2013”, que foi realizada na avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, com a presença de milhares de pessoas. Nestes debates efervescentes, alguns dizem que foi ali que a direita começou a tomar as ruas exigindo a retirada do governo PT, outros já trazem a memória para o que estava ocorrendo na cidade por causa da realização dos grandes eventos esportivos que estavam para chegar, assim como: Copa das Confederações, Copa do Mundo, Olimpíadas, Jornada Mundial da Juventude (JMJ), etc.

Trazendo essa memória histórica de anos antes das grandes manifestações de junho de 2013, é importante lembrar que assim que o Brasil passou a ser sede dos jogos esportivos e religiosos, inúmeras obras faraônicas começaram a ser prometidas e feitas pelas principais capitais do país. No Rio de Janeiro estas obras estavam concentradas principalmente em áreas que eram ocupadas próximas às favelas e periferias, o que fez mexer com estes territórios. Em 2009, anos antes destes megaeventos, jornais comerciais publicaram que a Prefeitura do Rio de Janeiro removeria 119 favelas do Rio de Janeiro.

Além disso, foi nesta mesma época que começaram a ser instaladas as Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, com a falsa promessa de que esta era uma cidade tranquila e pronta para receber os turistas e os megaeventos. As UPPs começaram a ser implementadas nas favelas cariocas em 2008 como um projeto do Governo do Estado, da época do governador Sérgio Cabral, junto à Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro, secretariado na época por José Mariano Beltrame.

Na Rocinha, sumiu um ajudante de pedreiro, o Amarildo. Caso que percorreu o mundo. Em diversas outras favelas na época ocupadas pelas UPPs, o desaparecimento forçado aumentou. “Entre 2007 e 2012, foram registrados 553 casos de desaparecimento nas 18 primeiras comunidades ocupadas pelas UPPs. Os relatórios do ISP indicavam aumento progressivo anual até 2010, quando o indicador atingiu o seu ápice (119 ocorrências)”, dados esses do Instituto de Segurança Pública em matéria do Uol, publicada em agosto de 2013.

E o debate das remoções e da não militarização da vida passou a ser presentes dentro das manifestações de 2013. Exemplo disso, é que em junho de 2013, mês de realização da Copa das Confederações, dentro do Conjunto de Favelas da Maré, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, a Força Nacional que ocupava este território, cometeu uma chacina que ficou conhecida como Chacina da Maré, em que 13 pessoas foram brutalmente assassinadas dentro de algumas casas. Neste dia da chacina, comunicadores comunitários, lideranças locais e moradores tomaram as ruas da favela para que a polícia não cometesse outra chacina.

Na ocasião, estes mesmos moradores conseguiram expulsar o caveirão, mesmo não tendo luz, nem internet e cercados por policiais. Foi a partir desse fato que o grito: Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar! ganhou as ruas do Rio. As faixas: A polícia que reprime na avenida não é a mesma que mata nas favelas, ganhou as ruas da Maré e do asfalto intensificando o debate racial e questionando a presença ostensiva das polícias nos atos e dentro das favelas e periferias do Rio.

Em 2014, esta mesma favela, por estar em um local estratégico da cidade, como a Linha Vermelha, Linha Amarela e Avenida Brasil, além do Aeroporto Internacional do Galeão, recebeu a presença do Exército Brasileiro por um ano de cinco meses, até terminar os jogos da Copa do Mundo. Toda a Maré ficou sob Garantia de Lei e Ordem, a GLO, sendo dirigida pelo Comando do Leste, no comando do general Braga Neto.

Com remoções a todo o vapor, com os despejos das históricas ocupações do centro do Rio, e com o aumento da censura, do desaparecimento forçado cometidos pelas UPPs, os favelados e faveladas se faziam presentes nessas manifestações de 2013 em diante, as pautas se misturavam e gritos, manifestos, atos e grandes debates eram feitos pelas praças públicas da cidade.

Remoções e gentrificação

Na época, a organização internacional Witness e um grupo de jornalistas e militantes de direitos humanos do Brasil, realizou uma pesquisa que durou mais de um ano com mais de 100 vídeos assistidos. A pesquisa apontou que das favelas que na época sofreram as remoções, 44% delas não tinham qualquer tipo de informação sobre as remoções. 31% sofreram antes das remoções com as propostas inadequadas de reassentamento.

Ou seja, não houve nem ao menos um aviso de que estas famílias seriam retiradas, sem qualquer chance destes moradores tentarem alguma forma de resistência ou de se organizarem previamente ou tentarem algum tipo de negociação para não remoção com a Prefeitura.

Para além destas favelas que apareceram na lista das remoções, mais de dez ocupações que se auto-organizaram durante décadas pelas ruas do centro do Rio, sofreram ameaças de despejos. Muitas delas, antes de sofrerem o despejo, sofreram com a forte criminalização da pobreza, algumas eram, inclusive, divulgadas nas mídias comerciais como ocupações do varejo de drogas, outras de pessoas invasoras de prédios etc.

Eram 119 favelas na lista das remoções e as dez ocupações do centro do Rio sofrendo com a criminalização e os despejos, junto a isso, as favelas que estavam sendo impactadas pelas UPPs, também estavam sofrendo com a gentrificação. Afinal, muitas delas, assim como a favela Santa Marta, localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro, com o aumento no preço dos aluguéis, a legalização de direitos como energia, água, aumento no preço de gás e alimentos, os moradores que estavam nessa localidade por anos e anos, alguns tiveram que procurar favelas na Zona Norte mais distante da Zona Sul e do grande centro.

Para os movimentos de favelas do Rio, essa foi sem dúvida uma forma de remoção que na época passou a ser chamada de “remoção branca”. Houve a tentativa de embranquecer essas localidades, fazendo com que a classe média entrasse nos morros para também morar. Saíam os pobres por não conseguirem mais pagar aluguel, comida e tantas outras contas e entravam os brancos por ouvirem na mídia que este era um novo lugar a ser frequentado, experimentado e cabível de morar.

Militarização, censura e criminalização

Em 2014, um ano depois da Copa das Confederações, o Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi invadido pelo Exército. A Maré é formada por 16 favelas e aproximadamente 132 mil habitam o local. O exército, sob comando do general Braga Neto, passou a dominar todas as 16 favelas da Maré. Tanques de guerra, helicópteros, revistas constantes, prisões e assassinatos passaram a ser comuns dentro de todo o território mareense.

Além disso, foi durante as grandes manifestações que estudantes, pesquisadores, defensores de direitos humanos e favelados passaram a questionar os altos gastos envolvidos na militarização da vida negra, pobre e de seus territórios. Esta, sem dúvida, virou uma grande pauta dos movimentos sociais que ocupavam as ruas do centro do Rio. Na Maré, os gastos com tanques de guerra foram exorbitantes. Dados do Diário Oficial da União, com a publicação de uma medida provisória (número 642), assinada pela presidente Dilma Rousseff, revelam que “a mobilização de cerca de 2.500 militares (incluindo 200 PMs) teve um custo: cerca de R$1,7 milhão por dia”. O que significa que o governo federal fez um alto investimento durante o período que o exército esteve na Maré, gasto este todo destinado para controle interno.

Além dos altos gastos, é preciso saber que a histórica prioridade de qualquer governo brasileiro quando se fala nos direitos aos povos negros, pobres e favelados mostra que eles entendem direitos como militarização e controle dos corpos e dos territórios habitados por estas populações. Para quem vive nas favelas e periferias do Brasil, o termo pacificação, polícia, Exército, tanques e caveirões significam controle, militarização e criminalização da pobreza. O que para Achille Mbembe, é mais uma forma de controle quando se trata de um país de terceiro mundo e que tem até hoje a marca da colonização:

“política neste caso, não o avanço de um movimento dialético da razão. A política só pode ser traçada como uma transgressão em espiral, como aquela diferença que desorienta a própria ideia do limite. Mais especificamente a política é a diferença colocada em jogo pela violação do tabu. (p. 16)”. (MBEMBE, Achille. Necropolítica, 2001)

Não, por acaso, durante esse período de um ano e cinco meses que o exército se instalou na Maré, os 132 mil moradores tiveram em sua história 1 soldado para cada 55 moradores. Mas, dez anos depois, em um momento de grave crise sanitária com a chegada da pandemia da covid-19, estes mesmos moradores não tiveram um médico ou um enfermeiro para cada 55 moradores mareenses.

Dois anos depois da Copa do Mundo, foi realizado no Brasil as Olimpíadas, em 2016. Obras faraônicas foram programadas em toda a cidade, e muitas destas obras depois da realização destes megaeventos esportivos, foram abandonadas. Até os dias de hoje, em 2023, as linhas de ônibus do BRT em toda a Avenida Brasil, prometidas ainda naquela época (2016), continuam sem previsão de término.

Foi nesse período, ano de 2016, época da realização dos Jogos Olímpicos, que as manifestações estavam um pouco mais enfraquecidas por conta das fortes criminalizações cometidas pelos governos e suas forças repressoras durante a Copa do Mundo, quando 23 ativistas do Rio já tinham sido presos.

Talvez, por conta da forte criminalização nas ruas, nos anos de 2015 e 2016 o debate saiu das grandes avenidas centrais das grandes cidades e ganhou as escolas municipais e estaduais e as universidades públicas de todo o Brasil. Surgiram inúmeras ocupações estudantis, já os sindicatos mobilizaram e realizaram os seus próprios atos em busca de melhores salários, direitos trabalhistas e as praças públicas em diferentes pontos das cidades, se encontram ocupadas com as mais diversas atividades culturais e comunitárias.

Para ajudar a contar essa história, o Dicionário de Favelas Marielle Franco (wikiFAVELAS) selecionou o verbete “Jornadas de Junho de 2013 no Rio de Janeiro”, escrito pelo jornalista Arthur William Santos, que pesquisou o tema em sua dissertação de mestrado defendida em 2015 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O verbete traz uma linha do tempo dos principais protestos do período (90 só no RJ), além de listar as dezenas de grupos que atuaram durante as manifestações. A mobilização ocorrida a partir de junho de 2013 abriu espaço no Brasil para a emergência de novas formas de organização política e de produção midiática. O Rio de Janeiro reuniu milhões de pessoas em suas ruas, na luta pelo direito à cidade no contexto dos megaeventos.

Introdução: Gizele Martins

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O legado de Sérgio Arouca para a democracia

Por Sérgio Arouca

Vinte anos após a morte de uma das principais vozes da Reforma Sanitária, a participação social na construção das políticas públicas está cada vez mais fortalecida, demonstrando ser o caminho para o aprofundamento da democracia no país.

Para relembrar o legado de Sérgio Arouca, que no dia 2 de Agosto de 2023 completa os vinte anos de sua morte, o Dicionário de Favelas Marielle Franco resgata o discurso ‘Democracia é Saúde’ do médico sanitarista durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e traça um paralelo com a 17ª Conferência, realizada em 2023. Arouca assumiu em seu discurso a bandeira e o projeto do movimento da reforma sanitária que por anos organizou-se no Centro de Estudos Brasileiro de Saúde – CEBES e, posteriormente, na ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva.

O ano era 1986, o primeiro após o fim da ditadura que durou mais de duas décadas, e a 8ª Conferência Nacional de Saúde, presidida por Sérgio Arouca, marcava a primeira grande mobilização dos movimentos sociais em torno desta pauta específica. O cenário do Brasil em reforma, após uma forte repressão aos direitos humanos, faz lembrar o momento atual de reconstrução das políticas públicas após quatro anos de um governo conservador e negacionista. A situação difere quando consideramos que a direita em 1986 tinha seu poder em declínio, embora ainda tivesse capacidade de impor uma transição pactuada, enquanto, na situação atual, encontra-se mais enraizada socialmente. Ainda assim, a principal protagonista nestas duas oportunidades foi uma só: a sociedade civil organizada.

O processo da Conferência de 86 envolveu a até então inédita participação massiva dos usuários dos serviços de Saúde. Para além dos profissionais e especialistas no tema, a Saúde enquanto direito e dever do Estado foi uma construção da participação social. As deliberações da 8ª Conferência serviram como base para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Federal de 1988 e através da Lei 8.080 de 1990. Como presidente da 8ª CNS, Arouca foi o mentor desse novo formato descentralizado e com participação ascendente, que se tornou modelo para as Conferências Setoriais a partir de então.

Como conta Arouca em sua fala, a Conferência de 86 promoveu etapas locais e debates nos âmbitos municipal, estadual e até mesmo sindical. Tal fato permitiu que o encontro “pudesse representar os mais variados segmentos da sociedade”. Já como Deputado Federal, obteve a promulgação, em 1999, da lei nº 9.9836, que ficou conhecida como “Lei Arouca”, criando, no âmbito do SUS, o subsistema que cuida da saúde indígena através dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas. Passados 37 anos, a 17ª Conferência foi marcada justamente pela forte participação de novos grupos como os movimentos de mulheres, LGBTQIA+, de negras e negros, indígena, quilombola, de pessoas com deficiência, segmentos estes muito afetados pela ação do governo anterior, em especial durante a pandemia de covid-19.

Assim como as pré-conferências estaduais foram a face visível do Brasil em ebulição pós-ditadura, em 2023 a principal característica do processo foi a organização de uma quase centena de conferências livres temáticas. Favelas, Saúde Digital, População Negra e Mulheres, Povos Originários, figuram como alguns dos temas destes espaços de participação social. Este movimento teve início, ainda em 2022, com a realização da Conferência Livre, Democrática e Popular de Saúde, sob a liderança da Frente pela Vida, união de diversas entidades em defesa do SUS.

“A Conferência deixou de ser quatro dias para ser um grande processo durante o ano todo. E que, mobilizando a sociedade brasileira, a ciência, a academia, os profissionais, efetivamente possa caminhar para a construção de um grande projeto nacional na área da saúde. Um projeto nacional, que ganhando uma grande consciência, que podendo inclusive ser suprapartidário, que podendo fazer quase que um grande gesto de desejo e força, possa transformar em uma vontade tão grande, que se torne irreversível” (Sergio Arouca, durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986).

Da mesma forma que em 86, quando o então presidente da Fundação Oswaldo Cruz liderou a organização da Conferência Nacional que deu concretude ao projeto gestado nas lutas do movimento sanitário pela criação do Sistema Único de Saúde, em 2023 a instituição centenária Fiocruz manteve seu protagonismo na luta pelo direito à Saúde, tendo sua ex-presidenta Nísia Trindade, enquanto ministra da Saúde, afirmado que o Ministério da Saúde é o Ministério do SUS, numa reafirmação uníssona da assembleia de que “Saúde é Democracia”.

A autossuficiência na produção de vacinas e medicamentos foi um dos pontos levantados por Arouca em 86 e que impactaram profundamente a população brasileira durante a pandemia de covid-19, na qual o país ficou refém dos insumos produzidos no exterior. Para reverter esta situação, umas das prioridades do Ministério da Saúde, ratificada pela 17ª Conferência, é a estruturação do Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS), através do qual o Brasil atingirá a soberania ao se tornar independente de outras nações na pesquisa e no desenvolvimento de produtos e serviços em Saúde. Trata-se de articular um modelo de soberania sanitária que seja também um projeto de desenvolvimento econômico com inclusão social, desenvolvimento científico e incorporação tecnológica.

Como espelho da sociedade, as conferências de Saúde formam um mosaico da diversidade da população brasileira. O vídeo do discurso de Sérgio Arouca, que acompanha o verbete, mostra que a plateia da 8ª Conferência era composta por forte representação de mulheres, movimentos religiosos progressistas, negros, juventude e categorias profissionais. Em 2023, o retrato dos conferencistas foi bem similar ao dos setores presentes na posse do presidente Lula, quando subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado de pessoas que simbolizam a atual diversidade do povo brasileiro.

Coroando este momento de liderança da sociedade civil organizada na defesa do SUS, o Ministério da Saúde lançou o Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde com o objetivo de dar visibilidade à atuação desses atores, assim como desenvolver políticas públicas a partir deste diagnóstico. Mais de três décadas antes, Sérgio Arouca já tratava da importância do mapeamento de entidades representativas para o fortalecimento das discussões em torno das pautas da reforma sanitária.

Nada mais simbólico do que o tema escolhido para a 17° Conferência ter o verso “Amanhã vai ser outro dia” do clássico composto durante o tenebroso período dos anos de chumbo. A conferência de 2023 foi convocada em fevereiro do ano passado, ainda sob a gestão do governo anterior, contudo, assim como a canção de Chico Buarque, os movimentos sociais da Saúde já anunciavam que “Apesar de você, amanhã há de ser um novo dia”.

Sintetizado aqui pela transcrição de seu discurso durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, o pensamento de Sérgio Arouca continua atual mesmo 20 anos após sua morte. A escolha de seu discurso na inauguração da 8ª Conferência Nacional de Saúde é mais que um tributo a sua liderança; é a constatação da atualidade da defesa da democracia e da necessidade de inovações institucionais que permitam a construção de um país inclusivo, solidário e justo. Não se trata de uma tarefa fácil, mas, seguramente, é o caminho, como afirmava Sérgio Arouca.

“Talvez seria muito fácil e, inclusive, mais tranquilo, uma Conferência com um pequeno número de delegados (…) Mas eu acho que é exatamente por aí que é o caminho. Acho que nós temos que aprender a viver com a diversidade. Nós temos que aprender a viver com o coletivo. E vai ser na diversidade, vai ser no coletivo que nós vamos construir nosso projeto, imaginando que na construção disso, muitas vezes nós vamos errar, mas nunca vamos errar o caminho que aponta para a construção de uma sociedade brasileira mais justa” (Sergio Arouca, durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986).

Introdução: Arthur William Santos e Sonia Fleury, pesquisadores do Dicionário de favelas Marielle Franco

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O Novo PAC e o “Periferia Viva”

Por Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Em 2007, durante o segundo governo do Partido dos Trabalhadores (PT), o Governo Federal lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), uma iniciativa voltada para o desenvolvimento. A avaliação feita era que em meio à crise econômica internacional, o Brasil vivenciava uma estabilidade econômica que propiciaria realizar investimentos de grande porte em setores de infraestrutura, estabelecendo assim um novo modelo de desenvolvimento com estímulo ao crescimento econômico, sem comprometer a estabilidade financeira; investimento em obras que estivessem dentro do conceito de infraestrutura social (que é apresentado como novo), isto é, investimento em setores que incidissem diretamente sobre a qualidade de vida da população – saneamento e habitação, eletricidade, transporte, etc. Investimento econômico atrelado às políticas sociais: esta foi a principal imagem do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Esta iniciativa abriu uma agenda de políticas públicas urbanas para os territórios de favelas e periferias, impactando em vários sentidos a realidade de seus(uas) moradores(as). No âmbito do Rio de Janeiro – selecionado ná época como cidade-sede dos megaeventos esportivos -, o Programa Morar Carioca, por exemplo, foi destaque. Criado em 2009, foi reconhecido como uma nova versão do Programa “Favela-Bairro”, responsável pela remoção de diversas favelas na cidade. Porém, diferente do primeiro que levou infraestrutura apenas a algumas favelas da Zona Sul, o “Morar Carioca” teria a função de construir conjuntos habitacionais para realojar os(as) moradores(as) das favelas, alterando as dinâmicas da cidade. Retomado em abril de 2022, o Programa Morar Carioca, da Secretaria Municipal de Habitação, está atuando em 29 áreas da cidade do Rio de Janeiro.

Após anos de ações quase que exclusivamente de opressão policial em favelas e periferias por parte das Forças Armadas e das polícias, o governo federal estruturou o programa “Periferia Viva”, cujo objetivo é articular políticas públicas focadas nestes locais. No artigo desta semana, destacamos o verbete da plataforma wikiFavelas sobre esta nova política pública e enumeramos outros projetos do Novo PAC focados em territórios periféricos. Proposto na plataforma Brasil Participativo, o Periferia Viva é uma iniciativa da recém criada Secretaria Nacional de Periferias (SNP), ligada ao Ministério das Cidades. A área é comandada pelo sociólogo Guilherme Simões, militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Somente para o Programa Periferia Viva, o Novo PAC investirá o montante de R$ 12 bilhões. Deste valor, R$ 9.8 bilhões serão destinados à urbanização de favelas. A maioria dos territórios que serão atendidos pela urbanização está localizada nas regiões Norte (30) e Nordeste (32). Com valor total de R$ 1,7 trilhão, o Novo PAC prevê o investimento em periferias para além desta política específica. O Programa de Aceleração do Crescimento está ancorado em nove eixos: Saúde, Educação, Defesa, Energia, Inclusão Digital, Água para Todos, Cidades Sustentáveis, Infraestrutura Social e Transporte eficiente.

O Periferia Viva compõe o eixo Cidades Sustentáveis e Resilientes, cujos recursos são maiores do que os outros oito anunciados. O Minha Casa, Minha Vida (MCMV) é o programa que contará com o maior investimento no Novo PAC: R$ 354,4 bilhões no total. Sua meta é atingir a construção de 2 milhões de habitações, num importante diálogo com o direito à cidade. Outros subeixos de Cidades Sustentáveis e Resilientes que impactam favoravelmente as periferias são: Prevenção a Desastres, Contenção de Encostas e Drenagem (R$ 14,9 bilhões), Esgotamento sanitário (R$ 26,8 bilhões) e Mobilidade Urbana Sustentável (R$ 48,8 bilhões).

O Ministério da Saúde, por exemplo, vai investir R$ 150 milhões em projetos de Telessaúde, garantindo o direito à saúde para áreas remotas como comunidades rurais, indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Dentro do contexto do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), a Fiocruz vai construir um Complexo de Biotecnologia em Santa Cruz, um dos bairros com pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Rio de Janeiro. Serão investidos R$ 2 bilhões somente neste projeto, que promete ser o maior centro de produção de produtos biológicos da América Latina.

No eixo de Infraestrutura Social, o Novo PAC anunciou ações através de centros comunitários que articulam a Segurança Pública com políticas sociais. Para este projeto, o Governo Federal destinou R$ 800 milhões. No subeixo cultural, o novo CEU da Cultura é a principal iniciativa e terá foco especial nas periferias brasileiras. Serão selecionados 250 CEUs da Cultura em todo o país a um custo de R$ 500 milhões. Além disso, vão ser retomadas as obras do CEUs das Artes em municípios periféricos, como Belford Roxo-RJ e Ananindeua-PA. Já na temática esportiva, está no horizonte a seleção de 200 Espaços Esportivos Comunitários​.

Por sua parte, o Ministério da Educação (MEC) também planejou o aporte de recursos para a melhoria da infraestrutura em educação básica de diversos municípios das periferias urbanas de todo o país. Mas os investimentos em periferias e favelas vão além do Novo PAC. A Secretaria Nacional de Periferias (SNP) do Ministério das Cidades está promovendo o Prêmio Periferia Viva que almeja contemplar 54 iniciativas de todo o Brasil com 50 mil reais cada. Está prevista ainda a realização de um Encontro Nacional das Periferias no final de 2023. O Ministério da Educação anunciou em julho que vai construir um campus do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) no Complexo do Alemão, uma das maiores favelas da capital fluminense. Ao custo estimado de R$ 25 milhões, a instituição será erguida no terreno de uma antiga fábrica de plásticos e era uma grande reivindicação dos movimentos sociais.

Os números dos investimentos do Governo Federal impressionam, mas precisam vir acompanhados de participação social dos(as) moradores(as) de favelas e periferias para evitar os problemas gerados com as versões anteriores do PAC, em 2007 e 2011. Garantir que os projetos sejam pensados com e pela comunidade é condição indispensável para a efetividade das políticas públicas. As formas de colocar isto em prática são muitas: audiências públicas, consultas, conferências, conselhos, etc. Não é preciso reinventar a roda. Basta recuperar e aprimorar as estruturas de participação social que foram desmontadas após 2016.

Como exemplo bem sucedido, podemos citar a construção participativa do Novo Plano Plurianual (PPA), que foi enviado ao Congresso em 30 de agosto e define as prioridades do orçamento da União para R$ 13 trilhões alocados em 88 programas entre 2024 e 2027. O processo do PPA Participativo durou quatro meses e contou com a realização de plenárias em todos os estados, além de três fóruns interconselhos e 125 oficinas com gestores públicos, atividades estas que envolveram a participação de mais de 34 mil cidadãos e 300 movimentos sociais. A população poderá, ainda, acompanhar a execução do PPA através de 69 indicadores, assegurando a participação social para além da atividade de planejamento.

(Introdução escrita por Arthur William Santos, pesquisador do Dicionário de favelas Marielle Franco e também autor do verbete a seguir)

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Um novo olhar para o direito ao saneamento

Por Arthur William Santos e R. Ramires

Saneamento básico é uma das principais questões das periferias urbanas de todo o país. Contudo, apesar dos diversos projetos do poder público para tentar garantir este direito, os moradores das favelas ainda continuam a conviver com problemas como esgoto na porta de casa, o que evidencia a insuficiência e descontinuidade dos investimentos no saneamento das favelas e periferias.

Para dar visibilidade a este tema e cobrar providências das autoridades, moradores costumavam recorrer à mídia tradicional ou à comunicação comunitária. Agora, com a apropriação das ferramentas digitais, os próprios favelados se organizam para mapear os casos críticos em seus territórios através da “geração cidadã de dados”.

E não param por aí. A partir do diagnóstico, os movimentos sociais conseguem propor políticas públicas diretamente para os gestores públicos, além de influenciar o aprimoramento de metodologias de coleta de dados sociais em favelas por parte das entidades responsáveis pelas estatísticas oficiais do Estado, como no caso do Censo. Recentemente, o IBGE convocou organizações de favelas para discutir novas formas de realizar pesquisas estatísticas nestes territórios.


Uma das principais iniciativas da geração cidadã de dados no contexto do saneamento básico é o “CocôZap”, projeto do “Data Labe”, um laboratório de dados com atuação no conjunto de favelas da Maré, zona norte do Rio de Janeiro. Nesta semana, o Dicionário de Favelas Marielle Franco destaca, aqui no Outras Palavras, o verbete “CocôZap” da plataforma Wikifavelas.

O CocôZap nasceu em 2016 e promove uma metodologia inovadora por dois motivos: tem como base um laboratório de dados (Data Labe) e é pensado pelos próprios moradores da Favela da Maré. De lá para cá, houve a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei n.º 14.026/2020) e outras iniciativas se somaram nestas articulações da sociedade civil organizada. Uma delas é a Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde, criada em 2022 após a privatização da empresa responsável pelo abastecimento de água na região metropolitana do Rio de Janeiro. Entre outras ações, esta rede atua no levantamento de dados sobre o abastecimento em favelas e territórios periféricos.

Além dos problemas sociais consequentes da privatização, há os impactos ambientais que, em seus desdobramentos, revelam recortes de raça e classe em suas incidências. Territórios majoritariamente populados por pessoas negras são os locais com mais descaso por parte da gestão pública, algumas regiões vivem completo abandono: a este fenômeno nomeia-se o racismo ambiental, como ilustra Rita Maria da Silva no artigo “Racismo ambiental deveria ser crime“, que também é um verbete do Dicionário de Favelas Marielle Franco. Outros verbetes da Wikifavelas também denunciam os riscos da privatização do saneamento nas metrópoles brasileiras, como por exemplo: “As mulheres contra os negócios da água” e “Água não é mercadoria”

O racismo ambiental compõe também a análise de uma conjuntura de “injustiça ambiental“, um conceito que “articula movimentos ambientalistas desenvolvidos nas últimas décadas com diversas lutas sociais, antirracistas, étnicas e feministas”.

Outro projeto de destaque ocorreu durante a pandemia de covid-19 no Morro Santa Marta. Moradores desta favela da zona sul carioca organizaram uma sanitização nos becos e vielas da comunidade, evitando a proliferação do coronavírus. Por conta da inatividade do poder público, o protagonismo ficou sob responsabilidade da sociedade civil, que recebeu doações para executar seu trabalho. Já em em 2022, uma cooperativa da comunidade Vale Encantado, situada na Floresta da Tijuca (Rio de Janeiro-RJ), inaugurou um biossistema para tratar o esgoto da comunidade.

Neste segundo semestre, o Dicionário de Favelas Marielle Franco está organizando um ciclo de debates sobre “Produção de conhecimentos e memórias em favelas e periferias” em parceria com diversas instituições: BONDE (IESP-UERJ), CIDADES-Núcleo de Pesquisa Urbana (PPCIS-UERJ), Grupo Casa (IESP-UERJ), Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), Instituto Raízes em Movimento e Radar Saúde Favela (Fiocruz). Essa iniciativa mostra uma mudança importante na visão sobre o “locus” privilegiado na produção de conhecimentos, tradicionalmente atribuído à Academia. A Academia quer ouvir moradores de favelas e periferias que estão envolvidos na produção de conhecimentos e preservação da memória em seus territórios. Dentre os assuntos abordados nos quatro encontros, encontra-se a atuação da Geração Cidadã de Dados nas pautas da Infraestrutura e do Meio Ambiente.

A memória das favelas é outro tópico que ajuda na avaliação das atuais políticas públicas e na proposição de novas ações do Estado. Registrar e discutir a memória das favelas são ações fundamentais para a avaliação de políticas públicas, como as de saneamento básico, por exemplo. Fotos, vídeos e relatos de moradores contam muito mais do que os relatórios burocráticos dos órgãos estatais e demonstram a real efetividade de programas governamentais nestes territórios ao longo das últimas décadas. A apropriação das ferramentas de organização desse material pelos movimentos sociais é justamente um dos objetivos do Curso de Acervos Marielle Franco, promovido pela equipe da Wikifavelas em parceria com o ICICT/Fiocruz.

Introdução: Arthur William Santos e R Ramires, pesquisadores do Dicionário de favelas Marielle Franco

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As mídias periféricas contra a barbárie

Por Gizele Martins.

Dez anos depois, as Jornadas de Junho de 2013 ainda provocam grandes controvérsias sobre seu significado social e político, desde análises que enfatizam a novidade representada pela ação coletiva que assumiu uma forma horizontalizada e conectada pela internet, dando origem ao boom dos coletivos e pautas identitárias que proliferaram nessa década, até as explicações que encontram na negação da política como lugar da corrupção, o ovo da serpente que terminou gerando o fenômeno do bolsonarismo.

Se bem é verdade que grupos de direita como o MBL e Vem para a Rua foram os grandes beneficiários políticos que souberam canalizar a insatisfação coletiva em proveito de suas pautas conservadoras, as Jornadas de Junho fizeram parte de um contexto global de insatisfação com os resultados das políticas de austeridade que aumentaram as desigualdades e aumentaram a concentração da riqueza, beneficiando sobejamente o 1% mais rico. Outro fator detonador diz respeito às transformações na sociabilidade, em face à ausência de projetos coletivos em sociedades que incentivaram, durante décadas, o individualismo competitivo, bem como a falta de perspectiva de absorção dos jovens em mercados de trabalho cada vez mais precarizados. No Brasil, o contexto de insatisfação ganha contornos particulares, em uma conjuntura de crise econômica, o que se manifesta no elevado número de greves no período, de crise política, com a atuação deletéria da Lava-Jato e o enfrentamento do governo pelo Congresso, que culminou no golpe de 2016. Adicionalmente, uma crise moral aprofunda a falta de legitimidade dos governos, ao dar prioridade à promoção de grandes e dispendiosos eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, quando a população se via prejudicada pela falta de serviços públicos que atendesse suas demandas.

Enquanto as Jornadas de Junho de 2013 se tornaram fenômeno midiático, político e objeto de análises acadêmicas que atravessaram a década, o fenômeno da organização da ação coletiva em territórios de favelas e periferias só ganhou algum destaque durante a pandemia, quando, na ausência de políticas públicas efetivas, os(as) moradores(as) se organizaram para enfrentar o quadro sanitário e o agravamento provocado nas condições de vida da população, tema que o Dicionário de Favelas Marielle Franco tem tratado de forma permanente. Trata-se de trazer à luz o conjunto de experiências concretas de desenvolvimento de ações de gestão territorial, organização, mobilização de recursos, desenvolvimento e difusão de tecnologias, produção de dados e uso da comunicação comunitária como instrumento de construção de redes de ação coletiva.

Para além do acervo acumulado, importa levantar questões acerca das razões que levam os moradores a se organizarem em situações de escassez de recursos, ausência de recursos políticos, tecnológicos e financeiros e ameaça constante de violência estatal ou da parte de grupos paramilitares e traficantes que dominam os territórios. Algumas dessas questões pretendem ser respondidas pela pesquisadora norte-americana, Anjuli Fahlberg, professora de Sociologia na Tufts Universty, que acaba de lançar neste ano o livro de sua tese de doutorado “Activism under Fire”, pela Oxford University Press. Trata-se de um profundo estudo realizado na Cidade de Deus, no qual a autora tenta entender a singularidade das formas de ativismo em zonas conflagradas, diferenciando-as dos movimentos sociais tradicionais. O ativismo, nesses casos, é identificado como uma estratégia de não-violência, adotada pelos atores políticos como parte da sua resistência e adaptação ao contexto restritivo e violento onde habitam. A autora afirma que o ativismo nas favelas constrói uma esfera de política da não-violência, simbolicamente em oposição à esfera da violência do território. Por fim, ela identifica três tipos de configurações das ações coletivas que consubstanciam a esfera política da não violência: o “assistencialismo transformador”, a “militância comunitária” e a “resistência cultural”. Todas elas apresentam diferentes possibilidades de provocar mudanças a partir da sua ação coletiva.

As categorias acima devem ser tomadas como tipos ideais, que condensam um conjunto de características definidoras de uma configuração particular que as diferencia das demais. No entanto, a pandemia mostrou que em uma situação de emergência social, econômica e sanitária de tal magnitude, a dinâmica pode inverter papeis, subvertendo os esquemas analíticos. Assim, jovens que foram criminalizados no passado por seu envolvimento em bailes funks com batalhas de corredor, passaram a atuar no desenvolvimento de ações assistenciais, enquanto comunicadores comunitários que se organizaram para difundir informações imprescindíveis para que a população adotasse medidas não farmacológicas no enfrentamento da pandemia, assumiram papeis de lideranças comunitárias no pós-pandemia.


Introdução: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

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O Julho Negro que conecta periferias do mundo

Por Gizele Martins.

Há mais de 100 anos, surgiram as favelas no Rio de Janeiro. Historicamente, elas sofrem com a estigmatização, com a falta de direitos básicos, com o crescente aumento da violência policial e com o racismo cotidiano. Desde sempre esses grupos que sobrevivem nas favelas e periferias do Rio se mobilizam em luta por melhorias internas, eles buscam direitos, políticas públicas e visibilidade para os projetos desenvolvidos em seus devidos territórios favelados e periféricos.

Mas é recente que os movimentos de favelas passaram a ser reconhecidos enquanto movimentos organizados, pois até isso, dentro do Rio, é estigmatizado, mesmo sendo nas favelas e periferias onde estão os maiores grupos organizados de luta por memória, educação popular e comunitária, comunicação comunitária e tantas outras lutas. Um destes grupos são os movimentos de mães e familiares do Rio; elas formam seus grupos porque em algum momento perderam seus filhos ou parentes por causa da violência policial.

Estes grupos de mães se encontram e tornam suas dores lutas por memória e justiça. Há quase dez anos, grupos de mães e familiares do Rio de Janeiro junto aos movimentos de favelas que pautam o fim da violência policial e o racismo, organizaram a Articulação Internacional Julho Negro. As atividades realizadas são durante todo o mês de julho, quando ocorrem inúmeros debates relacionados ao cotidiano da favela e da periferia.

Ao passar dos anos, esta articulação passou a ganhar outros rumos, lideranças de movimentos de diversos países do Sul global passaram a integrar as mesas de debates e as trocas de conversas. E, com isso, para além dos debates, lutas conjuntas são tiradas nestes eventos do Julho Negro e outras ações de solidariedade são realizadas ao longo dos anos. Durante estes oito anos, já participaram palestinos, indianos, mexicanos, argentinos, sul-africanos e outros. Muitas semelhanças encontradas e muitas conexões já foram feitas ao longo desse período. Para tanto, neste artigo, destacamos o verbete da comunicadora mareense e pesquisadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco, Gizele Martins, “Julho Negro: articulação internacional luta contra a militarização, o racismo e o apartheid no sul global”, que remonta um pouco da história e da internacionalização dos movimentos negros na luta contra as violações de Estado.

Introdução: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

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O necessário Aquilombamento Digital

Por Ivonete da Silva Lopes e Jéssica Suzana Magalhães Cardoso

Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 1,32 milhão de quilombolas, residentes em 1.696 municípios. Sabe-se que territórios como os quilombos, periferias, favelas, aldeias e áreas rurais do nosso país ainda sofrem com diversas faltas de direitos, sejam elas educacionais, saúde, moradia, energia elétrica, água e tantos outros que ainda não foram garantidos a essas populações. Infelizmente, o acesso à internet não seria diferente, já que estes mesmos espaços de moradias populares são desprovidos deste direito.

Na semana do dia 8 a 12 de outubro, foi realizado em Japão, em Kyoto, o Fórum de Governança e Internet, que teve a participação do comunicador comunitário Raimundo Quilombola, representando a TV Quilombo e a Coalizão de Mídias Periféricas, Faveladas, Quilombolas e Indígenas. Na sua fala, ele colocou a necessidade de em espaços como estes debater políticas públicas referentes ao acesso à internet em territórios — como o Quilombo em que ele mora e atua no Maranhão. Disse também que, durante a pandemia, ficou sem acesso à internet, o que restringiu as possibilidades de se fazer uma campanha melhor de comunicação no seu território.

Para além do fato da falta de acesso à internet que dificultou a distribuição de materiais de comunicação, com a suspensão das aulas presenciais naquela época, ficou nítida a necessidade de registrar como estava se dando o processo educativo de meninas e mulheres nas favelas, periferias e, também, nos Quilombos, já que o cotidiano nos mostrou diferentes barreiras, algumas delas foram: falta de acesso à internet, falta de equipamentos adequados (computadores, celulares), dificuldades das escolas em adaptarem os conteúdos para o meio digital, falta de supervisão dos pais (para os menores).

Não por acaso, hoje se debate muito no Brasil o racismo digital e que a questão do acesso à internet nestes territórios está intrinsecamente relacionada à questão racial. Quando nos aprofundamos mais percebemos que existem outros grupos em maior vulnerabilidade, como, por exemplo, o caso das mulheres negras. Observa-se a iniquidade relativa à questão racial ao constatar que 52% das mulheres brancas têm no celular a única forma de conectividade, enquanto entre as mulheres negras esse índice sobe para 67%. Esses dados provêm de uma pesquisa realizada, no final de 2021, pela Fundação Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) para o Instituto Lula. É crucial destacar que esse estudo também ressalta que as pessoas e grupos excluídos digitalmente pertencem, em grande parte, aos mesmos estratos sociais já marginalizados por outras formas de segregação. Isso inclui mulheres, negros, grupos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, idosos, membros da comunidade LGBTQIA+, pessoas com deficiências ou corpos não normatizados, além daqueles que vivem em áreas pobres, remotas ou rurais.

Para além da falta de acesso à internet, também há o problema dos algoritmos — seja nos Quilombos ou em realidades de moradias precárias na cidade –, pois os conteúdos que geralmente chegam ao grande público não é de comunicadores ou influencers de quilombos, favelas ou periferias, é sempre de pessoas brancas: “Quero que meu trabalho chegue a mais pessoas, mas a gente sabe que o algoritmo pode atrapalhar. Uma coisa comum nas redes sociais em geral, é que o algoritmo é branco. Pra gente que é produtor, influencer preto, fica muito mais difícil de entregar o conteúdo de fato. Você faz algo foda, vem uma pessoa branca e reproduz, acabou. Por isso que sempre valorizo a rapaziada da minha área”, disse o DJ Swag no episódio 18 do Programa Papo na Laje.

Para terminar, destacamos que os desafios para garantir o acesso à internet e a literacia digital são ainda mais complexos quando se consideram essas interseções de desigualdades. Portanto, a promoção do acesso universal à internet não é apenas uma questão de infraestrutura tecnológica, mas também um instrumento de justiça social e igualdade, abordando as barreiras enfrentadas por grupos historicamente marginalizados. Abaixo, segue verbete em destaque de autoria de Ivonete Silva Lopes e Jéssica Suzana Magalhães Cardoso, que compõem o Grupo Meios (UFV), “Mulheres quilombolas, comunicação e resistência”, contando um pouco das experiências de literacia digital para mulheres quilombolas no Brasil.


Introdução: Gizele Martins e Larissa Moura pesquisadores do Dicionário de favelas Marielle Franco.

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Jovens que olham para si e o mundo

Por Sonia Fleury, Clara Polycarpo e Patrícia Ferreira.

Dicionário Marielle Franco analisa o programa Papo na Laje, projeto instigante de comunicação popular. Nos episódios, as trincheiras da cultura, a negritude como conexão de afetos e o território como o fazer política: “só estamos vivos por causa de nós”.

Como as juventudes periféricas constroem suas identidades e sua potência política por meio das suas práticas culturais? A tensão entre lutas políticas e identitárias promove um intenso debate, mas como os jovens vivenciam e expressam em seu discurso a articulação desses elementos?

Nascido e produzido por jovens militantes das periferias do Rio de Janeiro, o Programa Papo na Laje se apresenta como um programa televisivo interessado nas múltiplas experiências de protagonismo das juventudes de favelas e periferias do estado. Diante das diferentes linguagens da comunicação popular e comunitária, seus idealizadores promovem encontros entre diferentes atores com distintas inserções sociais para “resenhas” que se transformam em episódios temáticos, nos quais dois convidados são entrevistados sobre suas atuações e perspectivas. Como o nome do programa evidencia, o cenário dessas resenhas é a favela, do topo das lajes das casas de moradores(as). Por isso, toda quinta-feira, às 18 horas, estreia um novo episódio no canal da TV Comunitária do Rio de Janeiro (TVCRio) e no YouTube, e o programa já está em sua segunda temporada de gravações. Todos os episódios encontram-se também no Dicionário de Favelas Marielle Franco.

Dando destaque para a trajetória de cada um(a) dos(as) convidados(as), o programa visa conhecer as ações e os sonhos que os movimentam, além de visibilizar organizações que já atuam nesses territórios, fortalecendo o contato e o intercâmbio entre os movimentos sociais em atuação. O Grupo de Análise do Discurso do Dicionário de Favelas Marielle Franco trabalhou a análise das principais formações discursivas identificadas nesses episódios, considerando o discurso como uma prática social, para além da atividade meramente individual de quem o enuncia. Assim a estrutura social se manifesta, delimita e molda o discurso, como também é por ele modificada. Através da Análise do Discurso dos jovens no Programa Papo na Laje e de sua divulgação tanto na plataforma wikifavelas.com.br, ampliamos a divulgação da produção político-cultural dos coletivos de favelas, evidenciando sua potência como ação coletiva. Sendo assim, a discussão sobre cultura e política pode ter como contribuição produções artísticas e culturais realizadas pelas próprias juventudes periféricas como parte do que se compreende a potencialidade de constituição de novos sujeitos(as) políticos(as) no Brasil.

Apesar da escolha dos temas e dos participantes ser feita pela direção do Programa Papo na Laje, a equipe de Análise do Discurso do Dicionário de Favelas Marielle Franco selecionou um conjunto de 6 episódios cujas temáticas dizem respeito a questões culturais e identitárias de um total de 48 episódios divididos em 2 temporadas, nos quais variaram os locais da gravação, contando com 2 distintos participantes em cada episódio, conduzidos por 2 diferentes entrevistadoras. As temáticas selecionadas estão relacionadas à construção de identidades, em sua articulação entre sujeito(a) e ação coletiva, a serem tratados sob a perspectiva teórico-metodológica da análise de discurso, que pretende compreender não apenas o conteúdo do discurso, mas a interação que dele se constrói a partir da tensão com a práxis social de seus atores.


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Origens e trajetória do MNU

Por Milton Barbosa

Às vésperas do Dia da Consciência Negra, o Dicionário Marielle Franco mostra a história do Movimento Negro Unificado, surgido durante a ditadura, e o desafio de aquilombar a política. Memória, conhecimento e ação política são chaves da resistência.


HINO AO MNU

Nethio Benguela

A certeza de ser Movimento,

Negro Unificado,

A malícia de ter no pensamento,

Toda luta do passado.

Na praça, palanque,

Ecoa pelos ares,

O grito da negrada,

Zumbi não morreu,

Ora viva Palmares!

Nossa luta unificada.

Há! que sabor deve ter,

Um pedaço, espaço no poder.

E se poder é bom,

Negro também quer o poder,

Cantando em alto tom,

Negro também quer o poder

A resistência preta no Brasil, responsável por produzir consciência racial, está presente durante toda a história do Brasil. Dos primeiros navios negreiros aportados em solo pindorâmico – para evocar a memória e a resistência dos povos originários – até os nossos “quilombos contemporâneos”, como podemos conceber as favelas e periferias brasileiras, temos exemplos de resistência e luta da população preta. E é justamente nesses espaços onde essa resistência é mais expressiva, seja através da inventividade nas formas de auto-organização, com coletivos locais pautando e criando soluções e “gambiarras” para temas que perpassam a vivência favelada, seja através dos gritos de ódio, dor e indignação diante das violências do Estado.

Mas apesar das violências que historicamente atingem a população preta e favelada, é cada vez mais comum termos iniciativas, como o Museu de Favela do Cantagalo-Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro, que lutam para valorizar as memórias e identidades locais. Um grande acontecimento veio para reafirmar a memória da população negra quando recebemos pela primeira vez no Brasil, Tchongolola Tchongonga Ekuikui VI, o Rei do maior grupo étnico de Angola. “De Angola vieram 60% dos escravizados africanos para o Brasil. Esta visita inédita e histórica representa um reencontro ancestral entre filhos de Angola que foram separados pela escravização”, diz Marcelo Moreira, sócio-diretor da DiversaCom. Em sua rica agenda de visitas pelo Rio de Janeiro, o rei esteve na favela da Maré e participou de um seminário sobre cultura e pluralidade religiosa na UNIperiferias. “A visita do Rei do Bailundo no Brasil representa um elo que nos une, relembrando uma história compartilhada, marcada por nossa herança cultural comum. Esta visita fortalece nossos laços culturais, enriquece nosso patrimônio histórico e constrói pontes que ultrapassam fronteiras, promovendo uma compreensão mais profunda e respeitosa entre nós“, diz a coordenadora de comunicação da UNIperiferias, Mariane Del Rei. A favela da Maré é a região onde se concentra o maior número de migrantes angolanos que vivem no Rio de Janeiro.

Os movimentos culturais das Batalhas de Slam e a Festa Literária das Periferias – FLUP convocam as vozes e as escritas faveladas, destacando a produção cultural e artística do povo preto e fazendo ruir o discurso da “favela como problema”. Iniciativas como essas e outras mostram como as favelas e periferias fazem parte da solução dos problemas sociais, com o conhecimento e expertise acumulados por seus moradores. O povo negro tem tecido teias que estabelecem a presença negra em espaços que foram e, de certa forma ainda são negados aos negros. Espalhados pelos becos, o povo preto quando fala, reforça toda a sua magnitude. Precisamos construir para desconstruir. Afinal, como diz nosso irmão (Emicida): Tudo que “nós tem é nós”! E se tudo que “nós tem é nós”, então tudo que “nós tem”: É TUDO! Que esta força ancestral, que mantém viva a africanidade brasileira, fale em memória daqueles que se foram e apoie aqueles que ainda não conseguem respirar. Isto é consciência negra.


Por uma outra abolição

A história do povo negro, por séculos, foi narrada pelo seu algoz e com isso foi resumida a infeliz trajetória da escravidão. Este viés de narrativa, intenciona manter firmes as correntes que aprisionam as memórias e as lutas do povo negro. As lutas que travamos visam romper com o controle colonial que, infelizmente, permanece vivíssimo na sociedade brasileira. Para isso queremos trazer para o contexto da consciência negra alguns dos grandes atores que formaram e formam a linha de frente desta batalha e juntos com eles, também os seus feitos. Qual história queremos contar?


Introdução: Norma Miranda, pesquisadora do Dicionário de favelas Marielle Franco.

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Direitos Humanos e Mulheres Negras

Por Mônica Francisco

A sobreposição de racismo e sexismo produziu uma categoria específica de “não ser” para as mulheres negras, relegadas à invisibilidade e negação de direitos. Mas as suas lutas se multiplicam pelo mundo e já produzem rachaduras na aliança patriarcal.

Das chochas dessa História escandalosa

Eu me levanto

Acima de um passado que está enraizado na dor

Eu me levanto

Eu sou um oceano negro, vasto e irrequieto,

Indo e vindo contra as marés, eu me levanto.

Deixando para trás noites de terror e medo

Eu me levanto.

Em uma madrugada que é maravilhosamente clara,

Eu me levanto.

Trazendo os dons que meus ancestrais deram,

Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.

Eu me levanto

Eu me levanto

Eu me levanto!

(Maya Angelou)


A Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento produzido após os horrores que traumatizaram o mundo durante a segunda guerra mundial, que foi estabelecida e proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948 como um tratado entre as nações, para que, pactuadas ali ações de proteção universal, não se repetissem os terríveis acontecimentos que produziram a mutilação e morte de milhões de pessoas.

Esse período notabilizou-se pela utilização da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, bem como o Holocausto de seis milhões de judeus nos terríveis e abjetos campos de concentração nazistas e suas macabras câmaras de gás. Não podemos esquecer que entre as vítimas estavam pessoas negras, LGBTI, pessoas com deficiência e povos ciganos de diversas etnias. Pâmella Passos, mulher negra e professora, ressalta, em artigo “Dos tratados aos traçantes”, que enquanto tudo isso ocorria, não tínhamos noção do que ocorria no continente Africano.

Vale dizer que o genocídio do povo negro ao longo do sequestro no continente africano e a vigência da escravidão nas Américas, foi o holocausto negro. Perto de completar 75 anos, aqui estamos às voltas novamente com o horror de uma guerra, que ironicamente envolve um dos personagens (judeus) desta página triste e vergonhosa da nossa história em uma série de atrocidades contra uma população massacrada e expropriada, além de desferir inúmeras ofensas racistas contra o povo palestino, ofensas que, inclusive, permearam os discursos nazistas à época, como a comparação com animais.

Neste aviltante cenário, um importante alerta nos é enviado com os resultados desta investida infame e brutal sobre o território sitiado de Gaza: o número assustador e crescente de mulheres e crianças assassinadas em uma guerra contra o terror, é mais uma vez a instauração do terror contra o terror! Conforme noticiou a Rede Brasil Atual, mais de 60% das mortes são de mulheres e crianças. Renato Russo, em sua belíssima e profunda composição, afirmou categórico que “o senhor da guerra não gosta de crianças!”


Introdução: Monica Francisco

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WikiFavelas: Folia de Reis também é da quebrada

Por Itamar Silva.

Marcada por suas tradições e espetáculos, as festividades populares encantam os olhos e o imaginário daqueles que a presenciam.  O lúdico, o sagrado e a história se encontram nestas datas festivas. Para aqueles que participam das festas, além de apenas uma data comemorativa, elas são cruciais na formação da identidade do grupo. Manifestações culturais como as festividades são capazes de abrigar diferentes circuitos de produção e circulação de bens e pessoas.

A folia de reis também é conhecida como “festa de Reis” e “Reisado” é uma festividade presente nas regiões rurais, nas cidades o dia de Santos Reis “anda meio esquecido” como cantou Tim Maia. A tradição da Folia de Reis, contudo, é mantida por gerações em algumas Favelas do Rio de Janeiro. Um exemplo é a Folia de Reis no Morro Santa Marta, mantida há mais de três décadas. O Dicionário de Favelas Marielle Franco também reúne outras histórias de Folias de Reis, por exemplo, no Morro da Formiga e no Morro do Chapéu-Mangueira.

A Folia de Reis é recheada de uma iconografia única, repleta de elementos religiosos e um trabalho artístico ímpar. Deste elementos sobressaem as bandeiras, o palhaço e o grupo de foliões, que reúne crianças, jovens, adultos e idosos.

Conforme descrito no verbete Folia de Reis do Dicionário de Favelas Marielle Franco, a festividade possui dois momentos distintos que são os Giros, ou jornadas, e o Arremate. Os Giros, se iniciam no dia 25 de dezembro e tradicionalmente tem a data de término prevista para o dia 6 de janeiro (dia de reis). Porém no Rio de Janeiro os giros se prolongam até o dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, o padroeiro da cidade. Neste período as folias realizam circuitos de visitação, levando suas bandeiras às casas dos devotos.

O segundo momento é o arremate que marca o fechamento do ciclo da folia e uma festa de rua que integra as folias, os adeptos e os bairros que estão localizados nas folias. O arremate pode ser compreendido como um momento de reciprocidade da folia representada pelo seu mestre para com os foliões e devotos. Dentro do arremate se apresentam outras figuras de caráter religioso como o palhaço da folia que é o guardião da folia.

inseri um parágrafo sobre identidade e resistência

Com o que foi apresentado nos dois momentos da  festividade, podemos compreender a folia como não somente uma festa, mas um exercício de repetição e manutenção de tradições. O historiador Luiz Gustavo Mendel, ao analisar o impacto do fluxo migratório de pessoas para a região metropolitana do estado do Rio de Janeiro,  evidencia a capacidade de um grupo de foliões de ocupar e formar novos territórios e criar novas folias.

Como já apresentado, a existência da folia está intimamente ligada à família dos mestres das folias e a comunidade em que se encontra inserida. É através do exercício de manutenção da memória por parte dos foliões a existência das folias, mesmo em cidades predominantemente protestantes como São Gonçalo é garantida.

Assim como outras expressões culturais relatadas aqui no Outras Palavras, a exemplo o Carnaval, o Funk e os Slams, e também a Festa de Cosme e Damião, a Folia de Reis mantém vivas tradições que formam comunidades e resistem à individualidade e impessoalidades das grandes cidades.

Com a apresentação da festa, podemos ver que quando se trata da folia de reis a vida o público e privado se misturam, a casa e a rua pertence a festa. Na folia lugares são modificados e tradições são mantidas vivas. Na Folia de Reis - Os Penitentes do Santa Marta, podemos ver como a tradição da folia e a história de um grupo estão ligadas.

Introdução: Marlon Manhães.

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Ver também

Ligações externas

WikiFavelas - Outras Palavras. Disponível em: Outras Palavras / Wikifavelas. Acesso em: 21 jun. 2023.