Mobilizações em Favelas para produção de conhecimentos

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

O presente verbete apresenta algumas das iniciativas que têm surgido para ampliar as mobilizações por direitos, cultura e memória em periferias e favelas. Esses movimentos, grupos e coletivos buscam promover o protagonismo dos moradores na produção de conhecimento por seus territórios.

Autoria: Palloma Menezes; ​Gustavo Azevedo;  Kharine Gil; Thaís Cruz; Hugo Oliveira e Caíque Azael.

Mobilizações nas favelas ontem e hoje[editar | editar código-fonte]

A mobilização coletiva em favelas existe desde que elas começaram a ser criadas há mais de um século. Desde a década de 1940, com a criação das primeiras associações de moradores, foram diversas as formas institucionais de sua agregação, que demarcaram diferentes estratégias de luta por direitos e, consequentemente, de relação com o poder público e com os demais atores sociais. As organizações supralocais e o próprio movimento mais amplo de favelados variou muito, ao longo da história, não somente de acordo com suas dinâmicas internas e locais, mas também com as conjunturas políticas nacionais.

A capacidade dessas associações de fazer exigências, sua autonomia de organização, sua cooperação com políticas estatais, assim como o nível de repressão e a criminalização de suas atividades, sempre dependeu de uma correlação de forças que se deu em ambiente altamente desfavorável para esses grupos sociais. Em um movimento com perdas e ganhos que Machado da Silva (2002) definiu como “controle negociado”, as organizações de favelas continuaram existindo e diversificaram-se em termos de pautas e formatos ao longo do tempo.

Com isso, novas formas de associação irão eclodir nesses espaços, sobretudo, as organizações não governamentais. Em um primeiro momento, essas ONGs eram organizadas por pessoas de fora das favelas, mas gradativamente os moradores desses locais passam a criar e gerir suas próprias organizações, as quais tinham objetivos diversos, entre eles um que ganhou força na década de 1990 foi “a da recuperação, preservação e divulgação de memórias das favelas” (Fleury e Menezes, 2022, p. 321). É sob esse novo contexto que conhecimento e memória ganham centralidade nos projetos conduzidos por ONGs e organizações de moradores.

Os anos 2000 trouxeram muitas mudanças com uma conjuntura de maior mobilidade social, sobretudo a partir dos efeitos de políticas públicas redistributivas e o aumento de novos coletivos e formas de organização em favelas (Aderaldo, 2013). Esse período é marcado pelo que Tiarajú D’Andrea (2013) chama de emergência de "sujeitos periféricos" conectados em rede com movimentos sociais, utilizando intensivamente tecnologias de informação para problematizar questões de identidade racial, classe e gênero, e que, por sua vez, também buscam reforçar sua representatividade política institucional via participação em partidos e em pleitos eleitorais.

Obviamente, não há como negar que a realidade vivenciada nesses territórios populares envolva subalternidade e múltiplas formas de opressão. No entanto, ainda assim, os sujeitos periféricos e favelados reforçam cada vez mais a condição de protagonistas da própria história. Eles  reivindicam direitos compondo organizações populares voltadas para produção de conhecimentos e memórias em prol do seu território, inclusive em uma perspectiva de permanecer em seus locais e não mais sair, como era comum entre personalidades do esporte e artistas que ascenderam nas décadas passadas.

Mais recentemente, a pandemia da Covid-19 representou um ponto de inflexão nesse longo histórico de mobilização dos moradores de favelas e periferias. Entre 2020 e 2021, ações coletivas, articulações em redes e a produção própria e disseminação de dados e informações desses territórios - o chamado “nós por nós” - fortaleceram-se intensamente. Nesse período, a organização das favelas alcançou uma visibilidade sem precedentes em grandes jornais, revistas e mídias digitais.

A morte de George Floyd em maio de 2020 também como um ponto de inflexão que mobilizou a sensibilização global contra o racismo e a violência policial, especialmente durante a pandemia, quando pessoas ao redor do mundo estavam em casa e tiveram maior contato com a repercussão do caso nas redes sociais e nos meios de comunicação. Esse evento desencadeou protestos em massa, não só nos Estados Unidos, mas também em outros países, gerando uma onda de apoio a movimentos e organizações que já atuavam no combate às desigualdades e violências sofridas por comunidades marginalizadas. No Brasil, o impacto foi significativo, pois ativistas e organizações das favelas e periferias aproveitaram esse momento de visibilidade para levantar pautas de combate ao racismo estrutural e violência contra as populações negras e periféricas. A atenção global ao caso de Floyd amplificou as vozes dessas organizações, promovendo campanhas e arrecadações para fortalecer a atuação desses grupos em defesa da vida e dos direitos humanos.

O destaque que essas iniciativas de favelas e periferias receberam durante a pandemia no debate público pode ser explicado: 1) pela rapidez e pelo alcance de ações que visavam a garantia da subsistência das pessoas (como doação de alimentos e materiais de limpeza) e a prevenção da disseminação do vírus (como sanitização das favelas); 2) mas também pela capacidade de articulação de redes (entre lideranças e grupos de diferentes favelas, instituições públicas, empresas privadas e organizações não-governamentais nacionais e internacionais), mobilizadas para produzir e difundir dados sobre incidência e mortalidade da Covid-19 nas favelas e periferias, bem como elaborar planos e campanhas comunitárias de combate à pandemia e prevenção da contaminação (Fleury e Menezes, 2020).

Portanto, é possível notar que, nas duas últimas décadas, multiplicaram-se iniciativas que visam ampliar os direitos de cidadania nas favelas e periferias do Rio de Janeiro. Um conjunto variado de atores coletivos buscam, por meio da cultura e do resgate da memória, disputar o significado de ser favelado(a). Ao introduzir questões relativas à raça, território e direito à cidade bem como inaugurar formas de representação coletivas - mandatas - os movimentos periféricos ressignificam a democracia. E, cada vez mais, moradores de favelas e periferias querem ter protagonismo na produção de conhecimentos, dados e memórias em relação aos territórios que habitam.

Ciclo de produção sobre produção de conhecimentos e memórias[editar | editar código-fonte]

Com o intuito de criar um espaço de encontros, trocas e reflexões coletivas sobre múltiplas iniciativas, experiências, estratégias e formas atuais de se produzir conhecimentos em favelas, o Dicionário de Favelas Marielle Franco (ICICT-Fiocruz), o BONDE (IESP-UERJ), o CIDADES - Núcleo de Pesquisa Urbana (PPCIS-UERJ), o Grupo Casa (IESP-UERJ), a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), o Instituto Raízes em Movimento e o Radar Saúde Favela (Fiocruz) organizaram no ano passado o Ciclo de debates sobre sobre produção de conhecimentos e memórias nas favelas e periferias do Rio de Janeiro. O evento incluiu cinco mesas que envolveram 20 pesquisadores/lideranças de favelas entre setembro e dezembro de 2023.

Todas as mesas foram gravadas, transcritas e estão sendo analisadas coletivamente com intuito de destacar a diversidade que constitui tais iniciativas em favelas, apontando como há uma multiplicidade de atores que atuam em cada localidade e de formas de se pesquisar, sistematizar e divulgar os conhecimentos que são produzidos nas favelas.

O ciclo incluiu cinco mesas temáticas: 1) Memórias e produção de conhecimentos sobre violências; 2) Memórias Faveladas e as Políticas Públicas; 3) Infraestrutura e meio ambiente; 4) Pandemia nas favelas; e 5) Censo de Favelas: produção autônoma de dados. A primeira e a quarta mesa foram realizadas no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), localizado em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, a segunda e a terceira mesas foram realizadas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), localizada no Maracanã, na Zona Norte do Rio de Janeiro. A última mesa foi realizada na Galeria Providência, localizada no Centro do Rio de Janeiro. Abaixo segue os grupos e seus respectivos representantes que participaram do ciclo:

Visão geral das mesas do Ciclo de Debates sobre produção de conhecimentos e memórias nas favelas e periferias

Mesa Data Grupo Representante
Memórias e produção de conhecimentos sobre violências 04/09/2023

IESP

Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial (IDMJR) Giselle Florentino e Fransérgio Goulart
Instituto Decodifica (antigo LabJaca) Marcela Toledo
GENI Daniel Hirata
Memórias faveladas e as políticas públicas 02/10/2023

PPCIS

Instituto Raízes em Movimento Alan Brum
Conexões Periféricas Douglas Heliodoro
Galeria Providência Hugo Oliveira
Rocinha Resiste/Museu Sankofa Leandro Castro
Infraestrutura e meio ambiente 30/10/2023

PPCIS

data_labe Maria Ribeiro
Visão Coop Juliana Coutinho
Agenda Realengo/Casa Fluminense Vitor Mihessen
Redes da Maré Shirley Rosendo
Rede Favela Sustentável Gisele Moura
Pandemia nas favelas e periferias 27/11/2023

IESP

Museu da Maré Thamires Ribeiro
Frente Maré Gizele Martins
Grupo ECO Itamar Silva
Movimenta Caxias Daniela Lopes e Vitor Lourenço
Fala Akari Buba Aguiar
Radar Saúde Favela Fábio Araújo
Censo de favelas: produção autônoma de dados 08/12/2023

Galeria Providência

NEGRAM Régis Coli
Galeria Providência Hugo Oliveira
Censo Maré Dalcio Marinho
146x favela - Fiocruz Richarlls Martins

Entre conflitos, parcerias e “epistemologias colaborativas”[editar | editar código-fonte]

Existe uma tensão racial a respeito da produção e do uso dos dados produzidos sobre os territórios de favelas. Segundo moradores, isso reforça a necessidade de que a população dessas áreas produza dados sobre si mesma. Como pontuou Maria Ribeiro, integrante do data_labe, durante o Ciclo de Debates, os dados disponíveis sobre a cidade são, de maneira geral, produzidos e acessados por pessoas brancas, majoritariamente homens de classes sociais elevadas, enquanto moradores de favelas e periferias, em sua maioria negros, tiveram acesso negado a essas informações durante muito tempo.

Prática ancestral[editar | editar código-fonte]

Um dos grandes desafios na construção do nosso Painel sobre produção de conhecimento e memória tem sido identificar os diferentes repertórios metodológicos utilizados por esses grupos para produzir, categorizar e sistematizar suas produções. Em nossas  conversas com representantes desses grupos, podemos observar a multiplicidade de abordagens para valorizar e sistematizar o conhecimento produzido nas favelas, seja através de fotografia, museus, livros e produtos audiovisuais. Apesar da multiplicidade dos grupos e das diferentes metodologias utilizadas, identificamos algo essencial e que parece pautar a forma como boa parte desses grupos trabalha: para os coletivos de favelas e periferias, a produção de conhecimento e memória em favelas é uma prática ancestral.

A valorização da ancestralidade é o pilar central que sustenta tanto a produção de conhecimento quanto a atuação desses grupos, influenciando, em certa medida, a própria vida nas favelas e periferias. Juliana Coutinho, que participa do Laboratório Visão Coop, ressaltou em uma das mesas do Ciclo que novas tecnologias devem apoiar a produção de conhecimento e a ação política, mas é essencial que esses grupos reconheçam que as maiores tecnologias vêm da ancestralidade. Nesse sentido, ela destacou que a atuação começa pela escuta dos mais velhos, para compreender as dinâmicas que os ancestrais utilizaram ao longo do tempo para sobreviver no território.

Nesse contexto, o Laboratório Visão Coop demonstra a importância do conceito de tecnologia ancestral para “dar o nome correto às coisas”. Outros grupos, apesar de não nomearem um conceito para essa prática, também irão colocar a ancestralidade como pilar para a produção de memória e conhecimento. Como pontuou Vieira (2006) a respeito da experiência de construção de um museu de favela, o Museu da Maré, esse é um exemplo de “uso do passado, como um ponto de referência da memória coletiva local” (Vieira, 2006, p. 3). Nesse sentido, as iniciativas de sistematização de conhecimentos ancestrais parecem ganhar força, pois como destacou Juliana Coutinho durante o ciclo, a oralidade tem sido um dos principais meios de transmissão de conhecimento entre comunidades quilombolas, faveladas e povos de matrizes indígenas, o que faz com que muitos dos conhecimentos produzidos por essa ancestralidade acabe se perdendo.

No caso do Museu da Maré, o combustível para a construção do projeto foi o desejo de memória que eclodiu em jovens moradores das favelas daquele território, “que ao desenvolverem uma experiência de vídeo comunitário, numa proposta de registrar a fala dos mais velhos, se viram surpreendidos por uma história que não conheciam” (Vieira, 2006, p.6). Segundo Vieira, destaca-se que muitos desses depoimentos orais dados por moradores mais velhos, surgiram quadros de memória que respondiam a antigos questionamentos desses jovens. Eles encontraram ali, referências da história da Maré que passaram a ter sentido a partir da memória dos velhos moradores. Dessa forma, foi possível ampliar as noções a respeito do espaço, da memória e do tempo da favela que puderam ser compreendidas por estas conexões entre juventude e ancestralidade.

No Complexo do Alemão, o Centro de Estudos, Pesquisa, Documentação e Memória do Complexo do Alemão - CEPEDOCA, ligado ao Instituto Raízes em Movimento, surgiu com o intuito de resgatar e preservar as histórias dos moradores mais antigos do Complexo (Facina, 2016). Contudo, o projeto se transformou em algo mais amplo e passou também a ser uma espécie de centro de estudos e pesquisas sobre as favelas do Complexo do Alemão, além de oferecer cursos de formação para agentes do poder público que trabalham nas favelas. Com isso, Alan Brum, co-fundador do Raízes e coordenador do CEPEDOCA, enfatizou durante o ciclo de palestras como o grupo tem se dedicado ao levantamento de histórias e memórias do Complexo do Alemão, com o objetivo de sistematizar o conhecimento sobre a ocupação das favelas da região.

Esforços de sistematização e buscas por legitimidade[editar | editar código-fonte]

Embora reconheçam que a produção de conhecimento é uma prática ancestral, moradores, por meio de seus grupos organizados, têm expressado uma preocupação com a falta de sistematização dos saberes produzidos ao longo dos anos em seus territórios de moradia. Shirley Rosendo, coordenadora da Redes da Maré, destacou que uma das grandes lacunas enfrentadas por grupos de favelas, periferias e movimentos sociais é justamente a sistematização do conhecimento gerado por moradores e coletivos desses territórios. Segundo ela, muitas vezes, as pessoas que estão "na linha de frente" da produção de conhecimento não têm tempo para interromper suas atividades cotidianas e registrar, categorizar ou documentar o que observam e produzem nas favelas e periferias. Essa falta de tempo e recursos para organizar o conhecimento produzido faz com que importantes reflexões e dados acabem sendo dispersos, dificultando a criação de uma base sólida de informações que poderia servir como ferramenta para embasar políticas públicas e fortalecer as reivindicações dessas localidades.

Moradores e integrantes de grupos de favelas e periferias frequentemente afirmam que o conhecimento e a memória que produzem nessas localidades são deslegitimados e não recebem o mesmo reconhecimento por universidades e órgãos do Estado que o conhecimento produzido por essas (e nessas) instituições. A experiência relatada por quem tenta produzir conhecimento a partir desses espaços é, muitas vezes, marcada por uma luta constante por legitimidade. Durante o ciclo de debates, Leandro Castro, coordenador de projetos do Museu Sankofa de Memória e História da Rocinha, observou que “nessa dinâmica de construir conhecimento, a academia vai invalidar ou contestar o que se produz em favelas e periferias, colocando o conhecimento favelado e periférico, assim como os agentes que o produzem, em um lugar de contestação”. Esse processo de deslegitimação reflete uma possível hierarquia na produção de saberes, onde o conhecimento produzido em espaços acadêmicos ou institucionais é visto como mais válido ou científico, enquanto o saber acumulado em territórios populares é tratado como secundário ou impreciso. Essa desvalorização cria uma barreira adicional para as periferias, que precisam não só criar e difundir seus conhecimentos, mas também lutar para que esses saberes sejam reconhecidos como legítimos e relevantes no debate público e acadêmico.

Em um dos debates realizados, Dalcio Marinho, coordenador geral do Censo Populacional da Maré, compartilhou sua experiência ao apresentar os dados do Censo da Maré em universidades e defender a importância de realizar levantamentos autônomos nas favelas. Frequentemente, ele enfrentava a resistência de acadêmicos e pesquisadores que argumentavam que esses dados já estavam disponíveis em pesquisas conduzidas por órgãos públicos. Marinho mencionou que ouvia com frequência frases como: "não, mas o IPP... porque os dados do IBGE, os dados do Ipea, os dados de não sei lá das quantas já existem". No entanto, ele destacou que esses dados não atendem às necessidades específicas dos líderes comunitários, que precisam de informações detalhadas sobre o território e seus moradores para formular demandas e sugerir ações ao poder público. Marinho também ressaltou que uma das maiores provas da necessidade do Censo da Maré foi a reação posterior à sua publicação. Após a divulgação dos resultados, diversas instituições, como a Fiocruz, universidades e empresas privadas, procuraram o grupo, reconhecendo que eles possuíam informações únicas e valiosas sobre a Maré. Isso evidenciou a relevância de produzir dados localizados e contextualizados, que ofereçam uma visão mais profunda e detalhada sobre os territórios periféricos, algo que muitas vezes não é capturado pelos grandes órgãos de pesquisa pública.

Como pontuou Dalcio, entende-se nas favelas e periferias que os dados e o conhecimento produzidos por órgãos públicos e universidades podem não ser suficientes para explicar a realidade da favela e possibilitar uma abordagem adequada aos problemas vividos nesses territórios. Aqui, identificamos que, ao mesmo tempo que os dados produzidos pela favela podem ser contestados pelo poder público, grupos e coletivos de favelas e periferias também contestam o conhecimento e os dados sobre esses territórios produzidos pelo poder público.

Um dos participantes do ciclo, por exemplo, afirma que de acordo com o último Censo de IBGE, o território onde atua possui 54 mil moradores. No entanto, a partir de um levantamento feito pela associação de moradores que levava em consideração aspectos econômicos e tendo em vista que, devido a questões de governança do território, muitos recenseadores não conseguiram atuar no local, acredita-se que os dados apresentados pelo IBGE não refletem de maneira realista a quantidade de pessoas que atualmente moram ali.

Outra demonstração de contestação e desconfiança em relação ao conhecimento produzido por órgãos públicos sobre favelas foi apresentada por Hugo Oliveira, coordenador da Galeria Providência. Durante a pandemia de Covid-19, seu grupo, inicialmente sem financiamento e apoio de órgãos públicos, uniu-se a outros coletivos da mesma favelas para realizarem um levantamento sobre o que estava ocorrendo na comunidade durante a crise de saúde pública. Hugo destacou que o sucesso do projeto foi devido ao fato de o levantamento ter sido conduzido pelos próprios moradores da favela. Ele afirmou que não tem dúvidas de que, se uma equipe com qualificação e titulação acadêmica tivesse sido contratada para subir a Providência e tentar realizar o mesmo levantamento, o projeto não teria tido o mesmo êxito.

Segundo Hugo, o diferencial do projeto e o motivo de seu sucesso foi o fato de outros moradores assim como ele, "cria" da Providência, neto de Dona Maria e filho do Suede, um estivador (pessoas específicas,ambos moradores da Providência e com reconhecidos pelo seu pertencimento local), estar à frente da iniciativa e em contato direto com os outros moradores. Para ele, essa conexão pessoal e comunitária foi crucial para a aceitação e efetividade do levantamento, já que os moradores se sentem mais à vontade e confiantes quando a pesquisa é conduzida por alguém que conhece a realidade local de perto, ao invés de pesquisadores externos, que muitas vezes não compreendem as nuances e dinâmicas do território.

Epistemologias colaborativas[editar | editar código-fonte]

Como demonstrou Telles et al. (2020), “esses coletivos e suas redes de apoio têm se mostrado poderosas agências produtoras de informações, saberes práticos e modos de conhecimento do que acontece nos territórios de vida das populações urbanas” (Telles et al., 2020, p. 4). É justamente nas frestas entre os conflitos e parcerias entre esses grupos, universidades e órgãos públicos que emergem epistemologias colaborativas, capazes de potencializar a produção de conhecimento sobre e nas favelas. Mesmo diante das tensões geradas pela contestação e pela luta por legitimidade do conhecimento produzido por esses coletivos, o conflito, conforme apontado por Simmel (2011), pode, em muitos casos, resolver dualismos divergentes e fortalecer tanto o trabalho desses grupos quanto às produções acadêmicas sobre favelas e periferias. Essa dinâmica de colaboração e confronto não só desafia as hierarquias de conhecimento, como também promove uma integração de saberes que valoriza tanto o conhecimento acadêmico quanto o saber prático, vivencial e científico das populações periféricas e faveladas. Dessa forma, o conflito, em vez de ser um obstáculo, pode atuar como um impulsionador para o desenvolvimento de abordagens mais inclusivas e eficientes na análise e compreensão das realidades urbanas das favelas.

O levantamento realizado na Providência citado acima também é uma das demonstrações importantes que nas tramas da produção de conhecimentos por diferentes agentes pode existir uma síntese com resultados satisfatórios para os territórios envolvidos. Se o projeto para lidar com a pandemia na Providência começou sem ajuda de órgãos públicos, em pouco tempo apareceu um pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Relações Raciais e Movimentos Sociais - NEGRAM (IPPUR/UFRJ) perguntando se o projeto precisava de alguma ajuda. Hugo contou que no início ficaram receosos com o fato de alguém da academia estar se aproximando do grupo. Contudo, como, em suas palavras “ajuda é sempre bem vinda”, a Galeria Providência aceitou o apoio do NEGRAM e da Fiocruz para “melhorar” aquilo que eles já estavam produzindo. Uma das principais colaborações que o NEGRAM reafirma para o projeto, segundo Hugo, foi a noção de “não fazer para a favelas”, mas “em conjunto com a favelas”, isto é, pensar o levantamento dos dados sobre a pandemia a partir dos próprios moradores e fazer com que esses dados voltem às mãos dos moradores, estando disponíveis para acesso.

Para Douglas Heliodoro, membro do Conexões Periféricas, a academia é um espaço fundamental para a sistematização de conhecimento e que, por isso, é importante que exista um diálogo entre universidade e movimentos sociais, desde que se respeite o fato de que esses grupos têm sistematizações de conhecimento e metodologias próprias. Além disso, ele apresenta um outro aspecto dessa trama: uma parte considerável desses sujeitos que produzem conhecimento em grupos de favelas e periferias também estão na academia, seja em graduações, cursos de pós-graduação e até como docentes. Porém, enquanto agentes que produzem conhecimento nesses territórios e enquanto representantes de grupos e coletivos de periferias e favelas, mantém-se na gramática dessas pessoas a negação da identidade “acadêmica” e a clara oposição entre si mesmo e o que seriam “os acadêmicos”.

Painel sobre Produção de Conhecimentos e Memórias na Wikifavelas[editar | editar código-fonte]

A partir da gravação, transcrição e análise das mesas do Ciclo de Debates de 2023, estamos desenvolvendo um painel na plataforma WikiFavelas que reunirá informações sobre as diferentes iniciativas de produção de conhecimentos e memórias em favela. O painel funcionará como um verbete guarda-chuva, compilando outros verbetes específicos que apresentam inicialmente os 20 grupos que participaram do ciclo, seus integrantes, suas pesquisas, suas iniciativas de incidência política e formação. Criamos uma linha do tempo que apresenta cronologicamente as organizações, a fim de facilitar a visualização do leitor sobre a data de criação de cada coletivo e também um mapa interativo que apresenta a localização geográfica de cada uma das organizações.

Linha do tempo dos grupos que produzem conhecimentos em favelas e periferias[editar | editar código-fonte]

1976-05-01T00:00:00Z
1997-05-01T00:00:00Z
2001-05-01T00:00:00Z
2006-05-01T00:00:00Z
2007-05-01T00:00:00Z
2012-05-01T00:00:00Z
2013-05-01T00:00:00Z
2014-05-01T00:00:00Z
2015-05-01T00:00:00Z
2015-09-01T00:00:00Z
2016-05-01T00:00:00Z
2016-09-01T00:00:00Z
2017-05-01T00:00:00Z
2017-09-01T00:00:00Z
2019-05-01T00:00:00Z
2020-04-01T00:00:00Z
2020-07-01T00:00:00Z
2020-09-01T00:00:00Z
2020-10-01T00:00:00Z
2020-12-01T00:00:00Z
2022-05-01T00:00:00Z
2022-09-01T00:00:00Z
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Mapa dos grupos que produzem conhecimento em favelas[editar | editar código-fonte]

 

No momento, estamos realizando entrevistas com as e os participantes do Ciclo para apresentar suas trajetórias e dos seus grupos. Mas pretendemos, a partir de 2024, ampliar este mapeamento para incluir novas pesquisadoras e pesquisadores, assim como instituições e coletivos que produzem dados no Rio de Janeiro atualmente. De forma preliminar, podemos afirmar que  a produção de dados em favelas  e periferias hoje está sendo liderada majoritariamente por jovens moradoras e moradores de favelas com formação universitária. Esses jovens pesquisadores, contudo, fazem questão de valorizar tudo que já foi feito pelos “mais velhos”, pelos que “vieram antes”, por isso, falam da produção de conhecimento em favelas como uma prática ancestral. Mas apontam que há atualmente um esforço maior na sistematização das informações produzidas, assim como a divulgação desses dados sobre temáticas diversas como educação, cultura, violência, saneamento, meio ambiente, entre outros. Isso envolve a discussão sobre uso e desenvolvimento de novas tecnologias e conceitos como o de geração cidadã de dados que abrem portas para o debate de um conjunto de metodologias e práticas de ações realizadas de modo colaborativo visando construir para a transformação social.

Um exemplo muito bem sucedido dessas práticas é o Censo Popular da Providência que envolveu a  produção de: a) um censo demográfico da favela; b) um automapeamento; c) uma cartografia social. Essa mobilização ocorre com o objetivo de produzir dados em conjunto com os moradores da favela, a fim de assegurar que esses dados retornem e gerem resultados para eles. A Redes da Maré, por sua vez, também já produziu censos demográficos e aponta sobre a importância de mobilizar essas produções locais, visto que o IBGE não aborda questões específicas e particularidades de territórios favelados e periféricos.

Notamos que os conhecimentos produzidos nos territórios estão sendo cada vez mais mobilizados para gerar diferentes formas de incidência e mobilização política tanto dentro como fora das favelas e periferias. E há também uma preocupação crescente em se investir em formação para que cresça e se diversifique cada vez mais a quantidade de moradores e moradoras qualificados para atuar com produção, análise e difusão de conhecimentos em favelas.

Apesar de todos os esforços desses grupos e coletivos para, cada vez mais, sistematizar e profissionalizar a produção e difusão de conhecimentos em favelas, vários pesquisadores de favelas  apontam que são, em algumas situações, hostilizados, deslegitimados e não recebem incentivos externos para potencializar suas ações. Um exemplo que ilustra esse cenário é a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial e a violência contra suas próprias produções. Um mural criado pelo grupo em homenagem às mulheres negras, em Duque de Caxias, foi vandalizado com tinta branca, apagando o rosto das mulheres representadas. Situações como essa podem acarretar em novas preocupações para os grupos no que diz respeito à como proteger suas produções de conhecimento e memória, considerando aspectos de segurança e preservação.

Contudo, mesmo com todas dificuldades que enfrentam esses grupos dizem que precisam seguir em frente para afirmar de forma cada vez mais categórica a necessidade de se produzir conhecimento com a favela e não para a favela. Moradoras e moradores de favela não querem mais ser vistos e enquadrados como objeto de pesquisa, mas sim como sujeitos políticos e produtores de conhecimentos e memórias.

Referências Bibliográficas[editar | editar código-fonte]

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D’ANDREA, Tiarajú. A formação dos sujeitos periféricos: cultura e periferia na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

FACINA, Adriana. Vamos desenrolar: reflexões a partir de um projeto de extensão universitária no Complexo do Alemão. In: RODRIGUES, Rute Imanishi. Vida social e política nas favelas: pesquisas de campo no Complexo do Alemão. Rio de Janeiro: Ipea, 2016.

FLEURY, Sonia; MENEZES, Palloma. Pandemia nas favelas: entre carências e potências. Saúde Debate. v. 44 no especial 4 dez. Rio de Janeiro: CEBES, 2020.

FLEURY, Sonia; MENEZES, Palloma. Memória como Direito à Cidade: Dicionário de Favelas Marielle Franco. Estudos Históricos.Estud. hist. (Rio J.) 35 (76) • May-Aug 2022 Rio de Janeiro, 2022.

VIEIRA, Antônio Carlos Pinto. Da memória ao museu: a experiência da favela da Maré. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ. Rio de Janeiro, 2006.

TELLES, Vera; AGUIAR, Ana Lidia; BUMACHAR, Bruna; RAMACHIOTTI, Bruna; Perseguim, Daniel; ARAUJO JUNIOR, Diego; BRITO, Juliana Machado; QUINTANILHA, Karina; LACERDA, Karina; SAMPAIO, Leandro Fernandes; RODRIGUES, Phirtia; ABRAMOWICZ, Renato; CANHEO, Roberta; CORTEZ, Tiago. (Micro)políticas da vida em tempos de urgência. Dilemas. Rio de Janeiro, 2020.

Ver também[editar | editar código-fonte]